Grande Entrevista ao Canalmoz e Canal de Moçambique
–
defende David Mendes, o “advogado dos pobres” em Angola, em Grande
Entrevista ao Canalmoz/Canal de Moçambique. Ficou célebre ao processar
criminalmente o presidente angolano, José Eduardo dos Santos, acusando-o
de crime de peculato, isto é, de se aproveitar do cargo e do Estado em
proveito próprio
Moçambique e Angola são governados por ditaduras comunistas
“Durante
o tempo colonial nunca tinha ouvido falar de fuzilamentos, mas o
primeiro impacto depois da independência foi o fuzilamento em praça
pública. Foi assim em Angola e em Moçambique também. A vida não tem
valor para o MPLA e a Frelimo.”
“Não
estou preocupado que da próxima vez, quando chegar ao aeroporto de
Maputo, digam-me: não pode entrar. Nós temos de afastar a Frelimo e o
MPLA do poder. Os indivíduos do partido comunista angolano, o MPLA, e os
indivíduos do partido comunista de Moçambique, a Frelimo, devem ser
afastados, para os nossos países se desenvolverem de uma forma mais
democrática e equitativa.”
“Vocês
aqui (em Moçambique) têm os serviços de segurança e nós também os
temos, como havia a PIDE-DGS. Andam a perseguir pessoas. Não dão
liberdade às pessoas. Estes têm um comportamento pior do que os
colonos.”
Maputo
(Canalmoz) - Manuel David Mendes, ou simplesmente David Mendes,
advogado e político, presidente do Partido Popular de Angola, é
conhecido como “advogado dos pobres”, mas ficou célebre ao processar
criminalmente o presidente angolano, José Eduardo dos Santos, acusando-o
de crime de peculato.
Encontrámo-lo numa estância hoteleira da capital moçambicana e depois de
muita negociação, aceitou abrir a boca e falar… e falou mesmo.
Descreveu o regime de medo e exclusão social e económica, implantado em
Angola pelo Governo do MPLA. Disse que Portugal está a ser colonizado
por Angola, e agora é a 19ª província angolana. Criticou a comunidade
internacional que está a ser silenciada pelos recursos naturais,
convivendo e legitimando – e por vezes até financiando – regimes
ditatoriais e corruptos em África. Quando convidado a falar de
Moçambique, sem rodeios, afirmou que Angola e Moçambique são governados
por regimes ditatoriais comunistas, que devem ser afastados do poder,
seja nas urnas ou na rua, para permitir que os dois povos se
desenvolvam. Melhor mesmo é ler a entrevista, que passamos a transcrever
na íntegra em discurso directo:
Canalmoz/Canal
de Moçambique (Canal): É político, advogado e activista dos direitos
humanos, angolano. É também tratado por “advogado dos pobres”. Quem é
David Mendes, numa auto-descrição?
David Mendes:
Eu acho que sou um cidadão comprometido com o meu país, comprometido
com as mudanças no meu país e particularmente comprometido com as
pessoas pobres. Venho de uma família pobre, nasci num bairro pobre,
cresci num ambiente de pobreza. Cheguei onde cheguei, conquistei espaço
da forma que conquistei, então acho que tenho, no mínimo, a obrigação de
retribuir aos meus irmãos, aquelas pessoas que sofrem, que não têm como
sobreviver, que não têm acesso à justiça. Sinto a minha obrigação moral
de retribuir todo o apoio que a sociedade me deu, para chegar onde eu
cheguei. Numa só palavra, eu sou um cidadão comprometido com a
cidadania.
Canal:
Entre várias acções de notoriedade nacional e internacional que tem
desencadeado em Angola, David Mendes ficou célebre ao apresentar queixa à
Procuradoria-Geral da República contra o presidente José Eduardo dos
Santos, acusando-o de crime de peculato, ou seja, desvio de fundos do
Estado angolano para o exterior… Tem provas contra o Presidente?
David Mendes:
Em África é muito arriscado questionar um chefe de Estado, e em Angola é
igual. Você põe em causa a sua vida, põe em causa tudo o que projectou
para si mesmo, porque estes regimes não são tolerantes. Tudo que para
eles cheire à ameaça, respondem com violência e esta violência chega ao
ponto de matar as pessoas.
Portanto,
é um compromisso que eu assumi comigo mesmo de moralizar a sociedade.
Foi o próprio presidente José Eduardo dos Santos que desafiou a
sociedade. Foi ele que veio a público dizer que quem soubesse, que
denunciasse, que apresentasse queixa. É óbvio que como eu sabia, como
tinha provas, tomei a iniciativa. E para que não pensassem que era uma
mera especulação, avancei com uma queixa-crime, e dando todos os
elementos de facto para que a sociedade soubesse o que se está a passar.
Canal:
O Procurador respondeu que não podia proceder à investigação, visto que
a constituição angolana confere imunidade ao presidente. Ficou
satisfeito com esta resposta? Não há quem julgue o cidadão José Eduardo
dos Santos?
David Mendes: Na
nossa qualidade de advogados, achamos a resposta do procurador
inconcebível, na medida em que quem tem a capacidade de impulsionar um
processo, é a procuradoria. O que a procuradoria podia ter feiro, seria
pegar os factos e investigar. E confirmados os factos, remetia-os à
Assembleia Nacional, pedindo a esta autorização para agir. Não se
recusar. Porque quem deve investigar os factos é a procuradoria. Havendo
uma denúncia de um cidadão, a PGR não pode dizer que não pode
investigar.
No
caso do peculato, este é um dos poucos crimes, à semelhança da traição,
em que o presidente da República pode ser destituído. Não é o
Procurador que destitui o presidente. Mas o Procurador, perante os
factos, remete-os à Assembleia Nacional e esta deveria requerer que o
presidente fosse destituído. Portanto, nós reclamamos à procuradoria.
E
mais, para além de José Eduardo dos Santos, há outras pessoas que nós
apresentámos como tendo cometido crimes. E se ele não investiga José
Eduardo dos Santos, que investigue os outros. Depois se houver a tal
conexão objectiva (com José Eduardo dos Santos), a Procuradoria
remeteria o processo a quem com competência. Portanto, esta negação do
procurador, para nós, é infundada.
Canal: Quer isso dizer que não desistiu do processo? Quais são os passos a seguir. O que vai fazer agora?
David Mendes:
Não vou desistir. Como disse, nós apresentámos uma reclamação à PGR e
se esta não responder à nossa reclamação, vamos apresentar directamente à
comissão de reclamações e petições de cidadãos, onde vamos colocar a
questão e, por outro lado, também, não nos inibe de irmos, quer ao
Provedor da Justiça, quer directamente ao Tribunal Constitucional, por
denegação da justiça. Porque sentimos que está a ser denegada justiça. A
PGR ao recusar a nossa queixa, estaria a denegar a nossa queixa, por
isso nós vamos continuar. Esgotados todos os mecanismos internos, é
óbvio que não nos vão restar outros mecanismos que não seja recorrer à
justiça internacional.
Canal:
Num regime onde o presidente controla quase todas as instituições, quer
seja pelo poder constitucional, quer seja pelo poder económico que
detém, ao apresentar esta queixa-crime, tinha fé que pudesse avançar ou
fê-lo por uma mera formalidade?
David Mendes: É
preciso que ganhemos consciência de que estamos em época de mudança e
ter a coragem de enfrentar um ditador. É um exemplo de mudança. Não é
fácil, mas precisamos de dar exemplo à sociedade que temos que enfrentar
os ditadores. Os ditadores não podem continuar a reinar sem que as
pessoas façam alguma coisa. Eu me sinto nessa obrigação de fazer alguma
coisa.
Canal:
David Mendes é dirigente da ONG “Associação Mãos Livres”, que se bate
pela defesa dos Direitos Humanos… como avalia a situação dos Direitos
Humanos em Angola?
David Mendes:
A situação dos direitos humanos em Angola, diria que está em dois
pólos: um de desenvolvimento positivo e outro de desenvolvimento
negativo. No pólo de desenvolvimento positivo há uma melhoria
substancial das condições de vida das pessoas. Mas em contrapartida, há
cada vez mais a limitação do exercício dos direitos políticos: São
reprimidas as manifestações; Há perseguições políticas; O acesso à
economia está limitado a duas famílias: a família Dos Santos e a família
Vandunen. O resto é periferia. Então, quando falamos de direitos
económicos e sociais, temos esses dois pólos. O acesso à economia está
vedado à maioria dos angolanos e o acesso à política está vedado à
oposição.
Canal: Acha que Angola é uma democracia?
David Mendes: Não,
Angola não é um Estado democrático. Angola é um Estado de direito,
porque tem normas jurídicas. Mas não é Estado democrático. É um estado
de ditadura, sob capa de uma democracia multipartidária. Temos um
presidente com 33 anos de poder, vai conquistar mais 5 e depois mais 5,
pelo que pensa estar, no mínimo, 43 anos no poder. Você não diz que tem
uma democracia quando, para ter um emprego, tem que ter um cartão do
partido no poder. Quando você, para ter acesso ao crédito, tem que ter
acesso ao cartão do partido no poder. Quando você não tem televisão
privada, rádios privadas, quando jornais privados são todos ligados ao
regime, não pode dizer que tem democracia. Você não pode dizer que tem
democracia quando não tem poder de escolha. Em Angola não tem poder de
escolha. Ou MPLA ou mais ninguém. Ou está com o MPLA ou é contra o MPLA.
Esta é a teoria. Então quando está num país com esses limites, não pode
dizer que está na democracia. A democracia não é só a pluralidade dos
partidos políticos, mas sobretudo a alternância política.
Canal:
Angola é descrita como uma potência emergente regional, muito pela
produção e exportação do petróleo. Até a sua cidade capital, Luanda, tem
sido classificada em vários rankings como uma das cidades mais caras do
mundo. Os angolanos gozam desse poder económico nas suas famílias, nos
seus pratos, nas suas vidas?
David Mendes: Não
existe. Existe uma promiscuidade entre o poder político e o poder
económico. O poder económico e o poder político estão nas mãos da
família Dos Santos e da família Vandunen. O resto é periferia. Angola é
uma farsa de ponto de vista visual. Angola não tem um crescimento
económico, tem crescimento de infra-estruturas. Luanda tem prédios, tem
estradas em que o número de carros nem cabe, mas a periferia é uma
miséria absoluta. É pior do que os países mais pobres da região. Angola
tem um índice de pobreza extremamente alto. Luanda não tem água, não tem
saneamento de meio base. As pessoas vendem uma falsa imagem de Angola.
Aquilo que as pessoas vêm na televisão, é uma falsa imagem. Angola de
verdade é uma Angola de miséria, onde a maioria das pessoas vive numa
situação de miséria. O índice de crescimento económico do país, não é o
índice de crescimento do bem-estar da população. Porque é grande a
disparidade entre os burgueses, entre os detentores do dinheiro, os
endinheirados e não ricos, porque Angola não tem ricos, mas tem
endinheirados, que roubam dinheiro público e agora estão a comprar
Portugal. Portugal se transformou na 19ª província de Angola. Porque há
um grupo de endinheirados, dirigidos pelas famílias Dos Santos e
Vandunen, que usam dinheiro público como se fosse sua lavra e fazem do
dinheiro do Estado aquilo que lhes apetece.
Canal:
Já disse que a “pobreza extrema é pior que no período colonial”, como
explica isto agora que os angolanos aparentemente têm mais acesso à
saúde, à educação, ao emprego, a infraestruturas sociais melhoradas?
David Mendes: Você
sabe quantos chineses estão a trabalhar em Angola? Você sabia que quem
ocupa a construção em Angola são chineses? Os angolanos não têm acesso à
construção civil… até trabalhos básicos são tomados pelos chineses.
Sabia que os portugueses retomaram todos os restaurantes e hotéis? Mais
de 120 mil portugueses estão em Angola. Qual é o acesso que o angolano
tem ao emprego. Não há uma estatística real para que se possa dizer que o
angolano tem acesso ao emprego. É tudo mentira, tudo uma fantasia. O
angolano não tem emprego. Antes se dizia que o problema do angolano era o
fraco nível de escolaridade. Hoje Angola tem mais de 8 universidade
privadas. Hoje tem centenas de jovens com licenciaturas em Angola e fora
do País, mas não tem emprego. Mas o chinês e o português e o brasileiro
chegam e têm o seu emprego e futuro garantido, que o angolano não tem.
Quando
falamos que o angolano vive mal, dizem: “mas tem telemóvel”. Não há
retrocesso no espaço e no tempo. Nós falamos é da comparação do nível de
vida entre os governantes e os governados. No tempo colonial, o
governado tinha um nível de vida não muito abaixo do governante, hoje, o
governado está numa situação de milhares de quilómetros do governado. E
mais, no período colonial, o governado tinha acesso ao governante.
Entre nós, o governado não tem acesso ao governante. Há uma barreira.
José Eduardo dos Santos sai à rua com uma segurança de mil homens. A
cidade fica sitiada. Vê-se que não há uma relação entre o governante e o
governado. No tempo colonial, não havia isso. No tempo colonial podia
não comer a carne, mas tinha acesso ao peixe. Hoje você nem tem acesso
ao peixe. Por isso, não pense que ter um telemóvel é sinal de estar a
viver melhor do que no período colonial. Não! Os padrões de comparação
são diferentes.
Canal: Isso não é saudosismo?
David Mendes: Não,
não pode ser saudosismo porque quando Angola se torna independente eu
tinha apenas 15 anos. Não posso ter saudades de coisas da infância. Não
se diferencia muito a forma, por exemplo, de ter acesso ao ensino. Eu
tive acesso à faculdade de direito porque tive o aval da JMPLA
(Juventude da MPLA). Então, a discriminação é igual.
Canal: Esta discriminação continua hoje?
David Mendes: Hoje
a discriminação é económica. Você para ter acesso à faculdade de
direito é quase impossível. Na faculdade pública há mais de 10 mil
concorrentes para 100 vagas. E nas universidades privadas você tem que
pagar 250 a 350 dólares por mês. Só tem acesso aquelas pessoas cujos
pais têm poder económico. Os que os pais não têm poder económico, não
têm acesso à educação. Por isso está aí a discriminação. É visível…
Hoje
em Angola ainda se estuda debaixo das árvores. Não vai dizer que no
tempo colonial também estudavam debaixo das árvores. Era diferente. As
condições económicas são diferentes. Angola é o segundo maior produtor
de petróleo em Africa. O que nós fazemos com o dinheiro do petróleo?
Para melhor controlar o petróleo, José Eduardo criou um fundo de
petróleo, onde pôs um dos seus filhos como gestor? O que você está à
espera? De um regime que não tem outro parâmetro de comparação senão a
ditadura colonial, e ditadura muito extrema.
Se
a PIDE-DGS andava atrás das pessoas, os nossos serviços de inteligência
fazem a mesma coisa. Hoje todo o mundo tem medo de falar ao telefone,
tem medo de andar em grupo… vivemos sob um regime de terror. Isso é pior
do que o colonialismo. Eu era criança até aos meus 15 anos quando
chegou a independência, e não se vivia sob terror. Hoje qualquer criança
tem medo. Se o presidente estiver a sair, todos têm medo de vir à rua
porque podem levar um tiro. O que é isso? É uma ditadura absoluta!
Canal:
Em batalhas democráticas, a opinião da maioria é que conta. Estará a
maioria dos angolanos farta do regime do MPLA? O que acha? E se
realmente as pessoas estão cansadas do MPLA, porquê não retiram o MPLA
do poder, por mecanismos constitucionais: o voto?
David Mendes:
A vontade popular pode ser manipulada. Estas são maiorias absolutas
como as de Mubarak, ex-presidente do Egipto que ganhou as últimas
eleições com mais de 90% dos votos, mas não terminou o mesmo mandato
porque foi deposto pela população.
Quando
você em época de campanha distribui dinheiro pelas pessoas, sem
justificar de onde esse dinheiro sai. Quando em época de campanha força
as autoridades tradicionais a vir ao seu comício, dando bicicletas, para
lhes comprar a consciência, isso é manipulação, não é vontade da
maioria. A maioria é impedida de exprimir a sua vontade. E se virmos,
por exemplo, os próprios intelectuais têm medo de se exprimir. E se os
intelectuais têm medo de se exprimir, o que espera de um vendedor da
rua, de um cidadão simples?
Então,
são vontades manipuladas. Há dias o MPLA disse que faria uma festa de
milhões. Obrigaram as pessoas a ir ao comício. Obrigaram os alunos a ir
ao comício, fecharam escolas, fecharam mercados, obrigaram as pessoas a
irem para o estádio com as camisolas de José Eduardo e do MPLA. É uma
maioria forçada, não é uma maioria de consciência.
Abra
a televisão pública, a TPA, para ver o que há-de assistir. “O MPLA é
que fez, o MPLA é que fez”. É tudo manipulação. O Estado não existe, não
é o Estado que fez, é o MPLA. O Estado foi capturado pelo MPLA.
Canal:
Existem estudos que mostram que em Moçambique e em Angola os partidos
no poder, a Frelimo e o MPLA, respectivamente, capturaram o Estado. Por
exemplo, as cerimónias do partido, aqui, são mais organizadas do que as
do Estado. Nota-se isso em Angola?
David Mendes:
Nós estamos num Partido-Estado. O Estado é o MPLA. Não podemos ter
receio de dizer isso. O MPLA tem primazia em tudo. Uma actividade do
MPLA pára o país. Por exemplo, o dia 10 de Dezembro do MPLA é superior
ao dia 17 de Setembro, dia do herói nacional. O aniversário de José
Eduardo dos Santos é superior mais do que as festas do dia da
independência. Está aí essa promiscuidade entre o partido e o Estado.
Canal:
David Mendes é político, inclusive já foi ministro no Governo do MPLA,
mas decidiu sair do governo, agora age em defesa dos Direitos Humanos, é
advogado bem-sucedido. Porque decidiu sair do Governo para a oposição?
Há também quem o acuse de estar a usar a política para ganhar influência
como advogado privado, é o caso de Bento Kangamba…
David Mendes:
Bento Kangamba é um indivíduo que não tem nível. Bento Kangamba é uma
das pessoas que não pode justificar o dinheiro que tem. Onde encontrou o
dinheiro que tem? Não tem nenhuma fábrica, não tem indústria, não tem
nada.
Eu
vivo como advogado. A minha actividade remuneratória é de advogado. É
de lá onde tiro o meu ganha-pão. Como activista dos direitos humanos,
presto parte do meu tempo, senão mesmo a maior parte do meu tempo, nesta
causa. Porque é um problema de uma causa. E nós os intelectuais não
podemos nos abster das causas. O que eles querem é que eu me abstenha
das causas. Eu não recebo do Estado. Vivo do meu dinheiro, dinheiro que
eu ganho com muito sacrifício. O nível de vida que eu tenho, é graças ao
meu empenho, graças à minha dedicação.
Canal: E então porque saiu do MPLA para militar na oposição?
David Mendes:
É a minha forma de poder manifestar o meu descontentamento, de poder
demonstrar que devemos mudar. Não é todos nos emprenhar no MPLA à espera
duma benesse, à espera dum cargo, à espera de não sei o quê… É isso que
Bento Kangamba não interpreta. Porque ele fora do MPLA não
sobreviveria, então ele pensa que todos nós temos que estar no MPLA,
como forma de transformar este Partido-Estado num partido que perdure
por todo o sempre. Mas nós não estamos para servir um regime caduco. Nós
estamos para derrubar este regime. E vamos derrubar este regime nas
urnas ou na rua. De alguma forma nós vamos derrubar este regime.
Canal:
É público que David Mendes tem sofrido ameaças e perseguições, e numa
dessas entrevistas foi citado a dizer que isso resulta do “facto de
continuar a resistir a negociar o silêncio”. O que é negociar o
silêncio?
David Mendes:
Negociar o silêncio é a prática de regimes corruptos como o nosso.
Dão-te um valor económico elevado e você deixa de falar. É assim que
calam jornalistas. É assim que calam activistas. Oferecem-te um bem
material e tu largas a causa. Eu não estou a negociar o meu silêncio. Eu
estou para lutar pela causa. Sejam quais forem as consequências.
Canal: Já lhe foi proposto algum bem em troca do seu silêncio, alguma vez?
David Mendes: Eu já denunciei isso, as tentativas de corrupção.
Canal: Há casos concretos que tem e pode mencionar?
David Mendes:
Temos… e estamos a dizer que nos próximos dias vamos publicar um
relatório onde tudo isso virá. Nomes e o que fizeram, incluindo
jornalistas.
Canal: Não aceita mencionar em primeira-mão alguns nomes e casos concretos aqui?
David Mendes:
Não, eu quero deixar. Eu vim aqui para repousar por causa de muito
stress. Felizmente tenho muitas amizades aqui que me podem proporcionar
algum conforto, aqui em Moçambique, longe de Angola. Vim para ganhar
fôlego, sair daqui um pouco mais sereno e preparar o nosso próximo
passo. Mas nós vamos publicar o nosso relatório sobre os escândalos em
Angola, desde financeiros até narcotráficos e outros.
Os recursos tornam arrogantes os governos corruptos e vocês vão sentir isso
Canal:
“Faz parte dos genes do regime ganhar com fraude e perpetuar-se no
poder a qualquer custo nem que para isso tenha de hipotecar todo o
petróleo para calar a comunidade internacional…”, são suas palavras numa
entrevista ao “Folha 8”. Qual acha que é o papel da comunidade
internacional em Angola?
David Mendes:
Fui muito claro na minha carta ao presidente Obama, onde dizia que o
petróleo não pode falar mais alto que a liberdade das pessoas, que a
democracia. Angola usa o petróleo como meio de chantagem e as nações
calam-se diante de petróleo.
No
encontro que tive também com a chanceler alemã (Angela Merkel), em
Angola, transmiti isso, que o petróleo não pode calar as grandes nações.
No mínimo, ela garantiu que tudo faria para que a força do petróleo não
calasse a Alemanha, mas países como Portugal, por exemplo, Brasil, e
outros, a força do petróleo, cala essas nações. A União Europeia está a
vergar perante o poder do petróleo de Angola.
Canal:
O que pensa dos estados ocidentais que nos seus países não toleram
dirigentes corruptos, ditadores e arrogantes, mas em África, e Angola
especificamente, se aliam a um regime com evidências suficientes de ser
antidemocrático?
David Mendes:
É a tal política de petróleo, política de recursos. E acredito que
actualmente Moçambique vive como vive porque depende muito da comunidade
internacional, mas vocês hão-de sentir os efeitos de petróleo. Vocês
hão-de sentir os efeitos dos recursos; Como o petróleo torna os governos
arrogantes. É o caso de Angola. Os outros países como querem os
benefícios dos recursos, deixam-se calar.
A “Princesa Isabel” (dos Santos) está a comprar tudo em Portugal… Angola está a colonizar Portugal
Canal: Como descreve a relação entre Angola e Portugal?
David Mendes: Hoje
eu diria que Angola está a colonizar Portugal. Portugal para Angola é a
nossa 19ª província. Porque a “Princesa Isabel (filha de José Eduardo
dos Santos) está a comprar tudo em Portugal e Portugal está de joelhos
para Angola. Portugal tem em Angola a sua subsistência. O futuro de
Portugal passa por Angola. Por isso Portugal é agora a 19ª província de
Angola.
Canal:
Desde 25 de Abril de 1974, com o fim da monarquia em Portugal, já houve
mudança de regimes inúmeras vezes. Em Angola são sempre os mesmos a
governar. Acha que o povo angolano é especial, não gosta de mudar os
seus políticos como faz o povo português, por exemplo?
David Mendes: Não.
O povo angolano não é povo especial. Isso é o que eles dizem, a
ditadura. Mas se os angolanos fossem um povo especial, José Eduardo dos
Santos não precisava de sair à rua com mil homens. Tem medo de quê? Faz o
que faz porque ele sabe que não é querido. O povo é obrigado pela
ditadura.
Se somos um povo especial, é porque somos um povo que estamos a ser corrompidos pela música e pelo álcool.
Sabe
quanto se paga em concertos musicais em Angola? Muito dinheiro… e sabe
porquê se paga isso? Para entreter o povo e evitar que se revolte. Vocês
se assistem podem ver que a televisão angolana começa e fecha com
Kuduro, que é musica e dança. Isso é para alienar os jovens. Música e
álcool é o que se faz em Angola. Não é porque somos um povo especial, é
porque somos um povo que estamos a ser corrompidos pela música e pelo
álcool. Isso faz com que esqueçamos, por um momento, dos nossos
problemas, mas não porque o povo seja especial. Nós queremos a mudança e
um dia vamos mudar.
Quando
começaram as manifestações, primeiro foram três pessoas, depois 10 e
depois 50 e hoje até indivíduos das forças de segurança, se manifestam.
Porque não somos um povo especial.
Se
ler os jornais oficiais, o meu nome aparece sempre como pessoa que está
agitando, mas eu não agito. Eu sou apenas o exemplo de uma pessoa livre
e estou preparado para por esta liberdade pagar com a própria vida,
porque estamos a lidar com um regime que quando não compra a sua
consciência, elimina-te fisicamente.
Luanda é um contentor de lixo
Canal:
Angola tem mais de meia centena de ministros e vice-ministos. Sabendo o
grande fardo que um ministro representa para o Estado, julga isso
necessário num país onde há mulheres e crianças que morrem em partos
caseiros por falta de maternidades?
David Mendes:
Não é com a existência de meia centena de ministros que se pode
demonstrar que há competência. Há compadrio. O nepotismo. É tudo no seio
da família. Vão ocupando todos os ministérios para ocupar todos os
espaços.
Mas
o aberrante nem é isso. Você tem uma pediatria onde põe três crianças
na mesma cama, mas estás a construir um monstro que é a futura
Assembleia Nacional. Não há dinheiro para construir hospitais, mas há
dinheiro para construir Assembleia da República, que é um monstro igual
ao Capitólio americano. Você não teve dinheiro para construir uma
universidade, mas por causa do CAN construiu 4 estádios que agora estão
aí a adormecer sem nenhum valor. No Afrobásquete construiu 5 pavilhões,
que estão aí a adormecer sem nenhum valor. Quer dizer, não se investe
nas áreas prioritárias como educação e saúde.
Com
tanto espaço que tem Luanda e Angola, você está a afastar o mar porque
quer construir na Marginal. Quer fazer da Marginal algo moderno,
enquanto não tem saneamento básico a menos de 5 quilómetros da cidade.
Enquanto a própria cidade de Luanda não tem iluminação. Quer dizer, você
tem hábitos ocidentais, quer mostrar uma cidade ocidental, quando na
verdade você vive numa miséria absoluta. Luanda é um contentor de lixo.
Não
fomos capazes de resolver problemas de saneamento de base, problemas de
lixo, mas vê prédios de luxo a levantar, para acomodar o mesmo grupo de
famílias e agora também, infelizmente, a alguns portugueses.
Canal:
A sua vida política, como vai? O Tribunal Constitucional angolano
rejeitou centenas de assinaturas apresentadas pelo Partido Popular
liderado por si. As eleições são já em Agosto…
David Mendes:
Até ao momento que eu lhe falo, tive o último contacto com Luanda hoje e
até aqui ainda não decidiram o futuro do meu partido. Quase todos os
partidos já se decidiram qual é o futuro, uns participam, outros não.
Mas seja qual for o resultado que vier, nós vamos continuar na política.
Porque até hoje nós fizemos a política fora do Parlamento. Por isso
nada nos vai prejudicar continuar a fazer política fora do parlamento.
Concorrendo como não, entrando como não no parlamento, nós vamos
continuar a fazer política.
Canal:
Já disse “todos nós que nos assumimos publicamente que não somos do
MPLA e que lutamos com todo o nosso esforço e inteligência para
implantar em Angola um verdadeiro Estado Democrático e de Direito… somos
tratados como angolanos de segunda”. Como explica isto, com factos?
David Mendes:
Nós os que não fazemos parte do regime, as pessoas até têm medo de
conviver connosco. Imagina, assaltam a sede do meu partido apresento a
queixa à polícia e a polícia não se digna sequer a mandar alguém da
polícia de investigação para apurar. Imagina um grupo de pessoas, que a
coberto da televisão, vai à minha casa para se manifestar. Imagina o que
é fazer manifestação numa casa de um cidadão, a coberto da televisão. A
polícia é chamada a intervir, aparece, prende os ditos líderes da
manifestação, mas quando vou à polícia, já os libertaram. Vão à minha
casa queimam a minha viatura, e a polícia nada diz. O que é que se
espera como resultado disso? É que se fosse cidadão da primeira, tudo
isso não aconteceria, mas como somos a periferia…
Canal:
Disse que há angolanos por conveniência, mas que basta atravessarem as
fronteiras angolanas já são portugueses, brasileiros, russos… Quem são
esses?
David Mendes:
Os ditos empresários angolanos. Todos eles têm dupla nacionalidade.
Saem contigo como angolano e chegam lá fora já são portugueses. Entram
como angolanos e saem como portugueses. Só são angolanos porque Angola
lhes dá recursos económicos. Angola para eles é só a fonte da riqueza….
Canal: Que são esses “eles”? certamente que tem nomes…
David Mendes:
A família Dos Santos e a família Vandunen. São as duas famílias que
dominam o país. E são as duas famílias que estão com cordão umbilical em
Portugal, São Tomé, Cabo Verde, Guiné.
Moçambique e Angola são ditaduras comunistas
Canal:
Certamente que sabe um pouco de Moçambique, este país irmão de Angola. O
que acha que os dois países têm de comum, para além da história de um
colonizador comum?…
David Mendes:
É a simpatia. O povo moçambicano é simpático. É um povo espontâneo. É
igual ao povo angolano. Os nossos regimes políticos não alteraram nada a
forma de estar dos povos. Venho para Moçambique muitas vezes e não
sinto muita diferença de Angola. Mas temos, como defeito, duas
ditaduras. A vossa é talvez mais branda, menos violenta, ao que parece. A
vossa aqui pelo menos engana que permite que haja jornais privados,
rádios e televisões privados, mas a nossa nem sequer isso permite. E
isso é próprio de regimes comunistas. A Frelimo é um partido comunista. O
MPLA é um partido comunista. Embora venham agora com capa de
socialistas, isso é uma farsa, são partidos comunistas. O seu
comportamento é um comportamento do centralismo democrático, da
obediência, do grande líder. Quanto o grande líder fala, o resto é
periferia. Então, são dois regimes comunistas, que estão a governar de
forma ditatorial, sem capacidade de desenvolver as duas nações. E se
eles não saírem do poder, isso vai fazer com que os nossos países fiquem
cada vez mais atrasados.
Os que nos libertaram acham que têm o direito de nos explorar porque nos libertaram
Canal:
Há quem diga que há necessidade dos povos africanos se libertarem dos
seus libertadores. Argumenta-se que os actuais dirigentes estão a agir
da mesma forma como os colonos. O colono apenas mudou da cor, de branco
para preto, mas o jugo continua… partilha da mesma opinião?
David Mendes:
Os nossos libertadores, do MPLA e da Frelimo, pensam que nós temos uma
dívida com eles. E nos fazem sofrer porque nos libertaram. E eles acham
que têm o direito de nos explorar porque nos libertaram. Mas nós não
lhes mandamos ir para as matas. Eles foram de consciência.
Vocês
aqui têm os serviços de segurança e nós também temos, como havia a
PIDE-DGS. Andam a perseguir as pessoas. Não dão a liberdade às pessoas.
Estes têm um comportamento pior do que os colonos.
Durante
o tempo colonial nunca tinha ouvido falar de fuzilamento, mas o
primeiro impacto depois da independência, foi o fuzilamento em praça
pública. Foi assim em Angola e em Moçambique também. A vida não tem
valor para estes (MPLA e Frelimo. Matar foi a coisa mais natural. Estes
nossos libertadores não têm a noção do mal que nos fazem.
Temos que afastá-los do poder para os nossos países se desenvolverem
Canal: Acredita que estes regimes podem mudar?
David Mendes: Nós
temos que afastá-los do poder para os nossos países se desenvolverem.
Eu não estou preocupado que da próxima vez, quando chegar no aeroporto
de Maputo digam: não entre. Nós temos de afastá-los do poder. Os
indivíduos do partido comunista angolano, o MPLA, os indivíduos do
partido comunista Moçambique, a Frelimo, devem ser afastados para os
nossos países se desenvolverem de uma forma mais democrática e
equitativa. Não há outra maneira.
É preciso não ter medo
O
nosso medo é a prosperidade deles. A nossa consciência de luta é o
recuo deles. Então ganhemos consciência de luta. Temos que lutar pela
nossa dignidade, pela dignidade do povo moçambicano, pela dignidade do
povo angolano.
Canal: O que deixa de mensagem para os moçambicanos que lutam para a edificação de uma sociedade mais justa?
David Mendes:
É preciso não ter medo. Isso é importante. É preciso que cada um de nós
se sinta livre. E se nós nos sentirmos com medo, não vamos a lado
nenhum. Eles fazem com que vivamos no medo para não reivindicarmos os
nossos direitos. É esse o grande problema.
Tal
como em Angola, aqui vejo indivíduos com carros de grande cilindrada,
mas quando vamos à periferia estamos a ver miséria. Mas que governantes
são esses que não sabem que com o preço daquele carro poderiam pôr
medicamento nos hospitais?
Que governantes são esses que não pensam que com o preço desses carros deveriam construir escolas? A sociedade deve reagir.
Infelizmente
o povo procura os líderes e os líderes são intelectuais. É preciso que
os intelectuais não se deixem intimidar. É preciso que os intelectuais
assumam o seu papel de lutadores por uma causa. Os professores
universitários, eu fico triste quando os vejo a fazer bajulação ao
regime. Eles devem ser formadores de consciência, mas vejo professores
universitários que são bajuladores…
Meus
irmãos, tal como em Angola, eu digo: temos que combater o medo, temos
de nos libertar desses ditadores que querem que nós vivamos sob o medo
para que eles possam progredir. O nosso medo é a prosperidade deles. A
nossa consciência de luta é o recuo deles. Então ganhemos consciência de
luta. Temos que lutar pela nossa dignidade, pela dignidade do povo
moçambicano, pela dignidade do povo angolano. É esta dignidade que fará
com que os povos possam progredir.
Canal: Últimas palavras….
David Mendes:
Para finalizar quero dizer que nada me calará, talvez só a morte me
calará. E que fique bem claro, eu não me exilo, vou continuar a viver em
Angola. Queira José Eduardo dos Santos ou não eu vou continuar a falar.
Ou então use outros mecanismos: que me mande matar.
Peculato: o que é?
Peculato
é o facto do funcionário público que, em razão do cargo, tem a posse de
coisa móvel pertencente à administração pública ou sob a guarda desta
(a qualquer título), e dela se apropria, ou a distrai do seu destino, em
proveito próprio ou de outrem”.
O artigo 312 do Código Penal tipifica o peculato como:
Crime
de apropriação por parte do funcionário público, de dinheiro, valor ou
qualquer outro bem móvel, público ou privado de que tenha a posse em
razão do cargo, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio. Além de, não
tendo a posse, mas valendo-se da facilidade que lhe proporciona o
cargo, subtrai-o ou concorre para que seja subtraído para si ou para
alheio.
Há três formas de peculato
Peculato-apropriação,
o funcionário público se apropria do dinheiro, valor ou qualquer outro
bem móvel, público ou partícular de que tem o agente a posse em razão do
cargo;
Peculato-desvio,
o funcionário público aplica ao objecto material destino diverso que
lhe foi determinado em benefício próprio ou de outrem;
Peculato-furto,
o funcionário público não tem a posse do objeto material e o subtrai,
ou concorre para que outro o subtraia, em proveito próprio ou alheio,
por causa da facilidade proporcionada pela posse do cargo.
(Borges Nhamirre /Canalmoz / Canal de Moçambique)