Canal de Opinião
por Boaventura de Sousa Santos
Maputo
(Canalmoz) – Do Correio do Brasil com a devida vénia reproduzimos esta
opinião do Professor Boaventura Sousa Santos, sociólogo português:
As grandes multinacionais, algumas bem conhecidas dos latino-americanos, como a Rio Tinto e a brasileira Vale do Rio Doce.
A
“maldição da abundância” é uma expressão usada para caracterizar os
riscos que correm os países pobres onde se descobrem recursos naturais
objeto de cobiça internacional. A promessa de abundância decorrente do
imenso valor comercial dos recursos e dos investimentos necessários para
o concretizar é tão convincente que passa a condicionar o padrão de
desenvolvimento económico, social, político e cultural.
Os
riscos desse condicionamento são, entre outros: crescimento do PIB em
vez de desenvolvimento social; corrupção generalizada da classe política
que, para defender os seus interesses privados, se torna crescentemente
autoritária para se poder manter no poder, agora visto como fonte de
acumulação primitiva de capital; aumento em vez de redução da pobreza;
polarização crescente entre uma pequena minoria super-rica e uma imensa
maioria de indigentes; destruição ambiental e sacrifícios incontáveis às
populações onde se encontram os recursos em nome de um “progresso” que
estas nunca conhecerão; criação de uma cultura consumista que é
praticada apenas por uma pequena minoria urbana mas imposta como
ideologia a toda a sociedade; supressão do pensamento e das práticas
dissidentes da sociedade civil sob o pretexto de serem obstáculos ao
desenvolvimento e profetas da desgraça. Em suma, os riscos são que, no
final do ciclo da orgia dos recursos, o país esteja mais pobre
econômica, social, política e culturalmente do que no seu início. Nisto
consiste a maldição da abundância.
Depois
das investigações que conduzi em Moçambique entre 1997 e 2003 visitei o
país várias vezes. Da visita que acabo de fazer colho uma dupla
impressão que a minha solidariedade com o povo moçambicano transforma em
dupla inquietação. A primeira tem precisamente a ver com a orgia dos
recursos naturais. As sucessivas descobertas (algumas antigas) de carvão
(Moçambique é já o sexto maior produtor de carvão a nível mundial), gás
natural, ferro, níquel, talvez petróleo anunciam um El Dorado de rendas
extrativistas que podem ter um impacto no país semelhante ao que teve a
independência. Fala-se numa segunda independência. Estarão os
moçambicanos preparados para fugir à maldição da abundância? Duvido.
As
grandes multinacionais, algumas bem conhecidas dos latino-americanos,
como a Rio Tinto e a brasileira Vale do Rio Doce (Vale Moçambique)
exercem as suas atividades com muito pouca regulação estatal, celebram
contratos que lhe permitem o saque das riquezas moçambicanas com mínimas
contribuições para o orçamento de estado (em 2010 a contribuição foi de
0,04%), violam impunemente os direitos humanos das populações onde
existem recursos, procedendo ao seu reassentamento (por vezes mais de um
num prazo de poucos anos) em condições indignas, com o desrespeito dos
lugares sagrados, dos cemitérios, dos ecossistemas que têm organizado a
sua vida desde há dezenas ou centenas de anos.
Sempre
que as populações protestam são brutalmente reprimidas pelas forças
policiais e militares. A Vale é hoje um alvo central das organizações
ecológicas e de direitos humanos pela sua arrogância neo-colonial e
pelas cumplicidades que estabeleceu com o governo. Tais cumplicidades
assentam por vezes em perigosos conflitos de interesses, entre os
interesses do país governado pelo Presidente Guebuza e os interesses das
empresas do empresário Guebuza donde podem resultar graves violações
dos direitos humanos como quando o ativista ambiental Jeremias Vunjane,
que levava consigo para a Conferência da ONU, Rio+20, denúncias dos
atropelos da Vale, foi arbitrariamente impedido de entrar no Brasil e
deportado (e só regressou depois de muita pressão internacional), ou
quando, às organizações sociais é pedida uma autorização do governo para
visitar as populações reassentadas como se estas vivessem sob a alçada
de um agente soberano estrangeiro.
São
muitos os indícios de que as promessas dos recursos começam a corromper
a classe política de alto a baixo e os conflitos no seio desta são
entre os que “já comeram “ e os que “querem também comer”. Não é de
esperar que nestas condições, os moçambicanos no seu conjunto beneficiem
dos recursos. Pelo contrário, pode estar em curso a angolanização de
Moçambique. Não será um processo linear porque Moçambique é muito
diferente de Angola: a liberdade de imprensa é incomparavelmente
superior; a sociedade civil está mais organizada; os novos-ricos têm
medo da ostentação porque ela zurzida semanalmente na imprensa e também
pelo medo dos sequestros; o sistema judicial, apesar de tudo, é mais
independente para atuar; há uma massa crítica de acadêmicos moçambicanos
credenciados internacionalmente capazes de fazer análises sérias que
mostram que “o rei vai nu”.
A
segunda impressão/inquietação, relacionada com a anterior, consiste em
verificar que o impulso para a transição democrática que observara em
estadias anteriores parece estancado ou estagnado. A legitimidade
revolucionária da Frelimo sobrepõe-se cada vez mais à sua legitimidade
democrática (que tem vindo a diminuir em recentes atos eleitorais) com a
agravante de estar agora a ser usada para fins bem pouco
revolucionários; a partidarização do aparelho de estado aumenta em vez
de diminuir; a vigilância sobre a sociedade civil aperta-se sempre que
nela se suspeita dissidência; a célula do partido continua a interferir
com a liberdade acadêmica do ensino e investigação universitários; mesmo
dentro da Frelimo, e, portanto, num contexto controlado, a discussão
política é vista como distração ou obstáculo ante os benefícios
indiscutidos e indiscutíveis do “desenvolvimento”. Um autoritarismo
insidioso disfarçado de empreendorismo e de aversão à política (“não te
metas em problemas”) germina na sociedade como erva daninha.
Ao
partir de Moçambique, uma frase do grande escritor moçambicano Eduardo
White cravou-se em mim e em mim ficou: “nós que não mudamos de medo por
termos medo de o mudar” (Savana, 20-7-2012). Uma frase talvez tão válida
para a sociedade moçambicana como para a sociedade portuguesa e para
tantas outras acorrentadas às regras de um capitalismo global sem
regras. (Boaventura de Sousa Santos – sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal)
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