Entrevista
Partido Frelimo tem peso a mais na sociedade
–
diz historiador Suíço, Professor Dr. Eric Morier-Genoud, que lançou
semana finda livro sobre nacionalismo em Moçambique, Angola e
Guiné-Bissau.
“Toda
a gente sabe que o partido no poder tem um papel muito preponderante e
com peso na sociedade, talvez, maior do que devia ser. Quem não dá apoio
(ao partido) e quem não concorda ou discorda abertamente pode ter
dificuldades. Há também uma distribuição bastante ilegal das riquezas.
Portanto, penso que há mais que a gente possa fazer.” – Professor Dr. Eric Morier-Genoud
Maputo
(Canalmoz/Canal de Moçambique) – O Professor Eric Morier-Genoud,
estudioso suíço lançou há dias um livro em Maputo, intitulado “Sure
Road? Nationalisms in Angola, Guine Bisau & Mozambique”. Concedeu
uma entrevista ao Canal de Moçambique para falar da obra que ele editou.
Na entrevista, o Professor Dr. Eric Morier-Genoud desmonta algumas
teorias históricas oficiais do Estado moçambicano.
Por exemplo, quando fala sobre a guerra dos 16 anos, nega que esta tenha
sido toda ela de desestabilização, como o Governo da Frelimo
oficialmente considera. Eric entende que o que iniciou como guerra de
desestabilização, encontrou terreno fértil internamente para virar
guerra civil. Diz também que deve se estudar mais figuras consideradas
“reaccionárias” pelo regime, como Padre Gwengere, Uria Simango.
Analisando a situação actual do País, considera que o partido Frelimo
tem peso a mais na sociedade e que quem não apoia o partido no poder
pode ter dificuldades para progredir em Moçambique. Eis a entrevista na
íntegra que voltamos a reproduzi aqui no Canalmoz:
Canal
de Moçambique (Canal) – Dr. Morier-Genoud veio a Moçambique para
proceder ao lançamento do livro, «Sure Road? Nationalisms in Angola,
Guine Bisau & Mozambique». Trata-se de uma obra que inclui trabalhos
de vários académicos como o Dr. Michel Chahen, Georgi Derlugian,
Fernando Tavares Pimenta, para apenas citar alguns. O senhor como editor
desta obra, pode dar-nos uma indicação sobre as linhas mestras que
orientaram a publicação do livro?
Professor Eric Morier-Genoud (Dr. Morier-Genoud):
O livro é o fruto de uma conferência que organizei em Oxford em 2008
com o Professor Gavin Williams, da Universidade de Oxford também.
Achámos que era boa altura para fazer um livro sobre o tema porque a
maior parte dos livros sobre o nacionalismo continua a ser aquelas obras
dos anos 60 e 70 sobretudo. Mais, nos últimos 10 a 20 anos abriram
muitos novos arquivos. Os arquivos da PIDE, muito interessantes, os
arquivos da FRELIMO, do MPLA, do Departamento do Estado dos Estados
Unidos da América, de Igrejas que tiveram ligações com nacionalistas,
etc. Portanto há muito material novo que pode trazer uma nova luz sobre a
questão do nacionalismo.
Em
termos teóricos, a maneira como a gente aborda o assunto do
nacionalismo mudou também muito. Há 20 anos a perspectiva dominante era
de que o nacionalismo tinha a ver com coisas muito concretas, uma
perspectiva que a gente chama de “primordialismo”: a nação definir-se-ia
pela língua, pela genealogia, e pelo território. Na década de 80 houve
um grande debate e avançou-se com a ideia de que a nação é uma coisa
muito mais complicada, uma coisa imaginária, talvez até inventada. Na
década de 90, a maioria dos académicos acabou por concordar que a nação é
uma coisa da imaginação das pessoas. Por exemplo, você que é
moçambicano e vive aqui em Maputo, não conhece todos os senhores que
estão na mata de Cabo Delgado, mas você, como ele, se for da mesma
nação, sentem que tem algo em comum, e que pertencem por isso à mesma
nação. Portanto a nação não é uma coisa concreta, física, mas uma
identidade que é imaginada.
Os
académicos também mudaram o foco da análise, deixando de trabalhar
unicamente sobre as elites – como é que as elites se tornaram
nacionalistas e mobilizaram o povo para libertar o país. Hoje em dia
estamos mais interessados em ver como o povo virou nacionalista e talvez
até levou as elites para o nacionalismo. Também estamos mais
interessados noutros grupos como as mulheres ou a juventude que tiveram
um papel preponderante no nacionalismo, uma coisa que é ainda pouco
tratada na literatura sobre o nacionalismo nos países lusófonos. Em
suma, teoricamente é a maneira de tratar o nacionalismo que mudou, e
temos hoje muito novo material, dois elementos que achamos criavam uma
necessidade de rever o tema do nacionalismo em Angola, Guiné-Bissau e
Moçambique.
Canal: Então, resumidamente o que podemos encontrar de novo neste livro?
Dr. Morier-Genoud: O
livro não é uma história de nacionalismo nos países lusófonos. A ideia é
mais dar novas pistas sobre como a gente pode abordar de maneira nova o
tema do nacionalismo. Não é uma nova história da FRELIMO, da luta de
libertação, não é uma nova história de Angola, etc. O que há na obra são
novas maneiras de encarar o assunto. Há um artigo, por exemplo, que
trata de como a Frelimo entendia a moçambicanidade, como a Frelimo
inventou uma cultura moçambicana, durante a luta de libertação. Há outro
artigo que trata do nacionalismo entre os brancos em Angola. Muitas
pessoas pensam talvez que todos os brancos eram colonos, mas havia
brancos no sul da Angola (neste caso), que pensavam como angolanos antes
da independência. Até criaram um partido nacionalista angolano para
libertar a nação angolana! Esta é uma faceta pouco conhecida do
nacionalismo em Angola, e o estudo desta faceta muda a maneira como a
gente vê o assunto do nacionalismo em Angola.
Portanto,
o livro abre novas pistas e mostra como é que analistas e gente
interessadas podem entender o nacionalismo duma maneira mais complexa,
subtil, e penso interessante.
Canal: Fala-nos sobre si, o que lhe liga a Moçambique e o que despertou em si o interesse de estudar a história de Moçambique?
Dr. Morier-Genoud:
É uma questão complicada. Não tenho uma resposta muito precisa. Mas,
digamos que em 1989 viajei pela África Austral e passei por Moçambique
nessa altura. Achei um país fascinante, com a guerra, com o V Congresso
da Frelimo, etc. Isso despertou em mim a curiosidade, e levou-me a
querer estudar sobre Moçambique. Depois quem estuda descobre novas
perguntas que levam a mais estudos, e assim por diante. Fiz pesquisa em
arquivos missionários na Europa, fiz investigação no terreno em
Moçambique, e também vivi e trabalhei cá na década de 90.
Canal:
Numa primeira fase da história da independência de Moçambique, a
religião revelou ser uma questão controversa. Acha que a política do
governo da Frelimo foi contra os interesses das igrejas no seu todo, ou
apenas um ajuste de contas com a Igreja Católica?
Dr. Morier-Genoud:
No meu entender, quando chega a independência, a Frelimo era sobretudo
secular. Quis separar o Estado das instituições religiosas, acabar com o
sistema que reinante durante o colonialismo em que a Igreja Católica
teve um papel predominante. A Igreja Católica (e de forma muito menor
algumas igrejas protestantes) cuidava de toda a educação e toda a saúde
dos africanos. Portanto, com a independência a Frelimo abriu uma nova
fase, em que separou a Igreja do Estado e nacionalizou aqueles serviços
sociais que estavam nas mãos das igrejas. Isto abrangeu todos: a Missão
Suíça, a Igreja Adventista, todos foram abrangidos, mas a Igreja
Católica foi mais atingida, uma vez que tinha aquela posição dominante
no período anterior. Não penso que isto foi um ajuste de contas. Houve
alguma hostilidade, sim, mas foi antes de tudo uma mudança de regime, da
qual quem sofreu mais (mas não unicamente) foi a Igreja Católica.
Canal:
Mas a hostilidade foi mais visível contra a Igreja Católica. Aí a
pergunta se tratava de algum ajuste de contas por esta ter sido rotulada
como a Igreja do Colono…
Dr.
Morier-Genoud: Numa primeira fase, da qual eu estava a falar, houve a
nacionalização de todos os empreendimentos das igrejas e alguma
hostilidade contra todas as igrejas. Mas não havia ajuste de conta.
Agora a partir de 1978, quando a Frelimo já era partido-Estado, houve
aí, sim, uma luta que tem a ver sobretudo com a Igreja Católica. Isso
esteve relacionado com duas dinâmicas: primeiro, o III Congresso da
Frelimo que trouxe a oficialização do socialismo na Frelimo e, segundo,
no mesmo ano, a Assembleia Pastoral nacional da Igreja Católica que
decidiu adoptar o modelo de uma igreja das comunidades. Os bispos que
eram progressistas queriam ter uma igreja do povo, uma igreja
progressista, mas alguns bispos conservadores queriam aproveitar esta
estrutura para resistir ao “assalto” do comunismo. Ora, quaisquer que
tivessem sido as nuances na igreja, a Frelimo entendeu que com esta
Assembleia Pastoral a igreja estava a entrar em modo de resistência, se
não de oposição. E por isso começou a atacar a religião, sobretudo a
católica, em 1978. Houve aí uma luta forte entre a Igreja e o Estado. A
luta tinha a ver com a igreja católica antes de tudo, mas abrangeu todas
as religiões. Muitas igrejas e mesquitas foram fechadas e a Frelimo
começou a ensinar o ateísmo, não só na rádio, mas também no campo, para
os camponeses. No entanto, isso não durou muito tempo por que havia a
guerra da Rodésia, a situação económica era complicada, muitos países
vizinhos e europeus queixaram-se deste ataque à religião, e uns
religiosos e crentes começaram a entrar em resistência aberta. A partir
de 1980, Samora Machel e o regime começaram a deixar de hostilizar as
religiões e começaram a trabalhar para restabelecer relações razoáveis
com as instituições religiosas.
Canal:
Depois desta fase difícil, a Igreja Católica teve um papel
preponderante no estabelecimento da paz no país. O seu papel missionário
continua na promoção da educação em zonas remotas de Moçambique, acha
que foi uma decisão acertada o Estado ter tentado hostilizar a igreja?
Dr. Morier-Genoud: Acho
eu que o ataque que houve à religião por parte da Frelimo foi
desnecessário e custou muito – o que a Frelimo rapidamente viu sozinha.
Isto é uma coisa. Agora outra coisa é a separação entre o Estado e a
Igreja. Antes da independência, o Estado colonial só queria a igreja
católica e ele hostilizava as outras religiões. A Frelimo pôs fim a esta
situação em 1975, e isso penso que toda a gente concorda que foi um
desenvolvimento positivo. O modelo que temos hoje (de pluralidade
religiosa) é porque houve esta ruptura com o modelo duma a Igreja
Católica quase oficial. Penso que esta ruptura foi necessária para
termos o modelo de hoje. Agora, se podia ter chegado ao mesmo ponto de
uma forma mais suave, mais diplomática, isso não sei. Mas penso que a
ruptura era inevitável e necessária.
Canal:
Dr. Morier-Genoud, figuras de destaque da religião moçambicana pagaram
com a vida por defender o seu sacerdócio, as suas ideias de justiça, de
direitos humanos, do respeito pela harmonia social e convivência
familiar. Recordamos o Padre Estêvão Mirasse, que desapareceu num campo
de reeducação no Niassa. Recordamos uma figura da nossa história, como o
Padre Mateus Gwengere. Que contributo poderão dar os intelectuais
ligados a Moçambique, como o Dr. Morier-Genoud, para a reabilitação da
imagem dessas figuras?
Dr. Morier-Genoud:
Aqui há duas coisas. Há, do lado político, a questão de saber se é
necessário reabilitar o Padre Gwengere e o Estêvão Mirasse. Isso penso
que os moçambicanos devem decidir por si próprios. Eu sou estrangeiro e
portanto não a pessoa própria para dizer o que vocês devem pensar e
fazer. Por outro lado, como historiador, acho que temos, sim, que
estudar estas figuras que foram chamadas de “reaccionários”, entre
outras coisas. Estudar o pensamento deles – que não foi só sobre justiça
social e harmonia... – e restabelecer a diversidade de pensamentos que
existiam no nacionalismo, e fora dele, durante e depois da
independência. Estudar para melhor compreender e para mostrar as
diversas linhas de pensamento que existiam na época – os diversos
marxismos, o pan-africanismo, o liberalismo, a social-democracia, os
conformistas, etc. Também as diferentes maneiras de imaginar a nação
moçambicana – com quais valores internos, com quais relações de género,
de gerações, de “raça”, com quais alianças internacionais, e com que
herança portuguesa (se alguma).
Canal: O Professor acha que é cedo demais para falar destas figuras?
Dr. Morier-Genoud: Não
sei. Honestamente ainda não sei muito bem. Estêvão Mirasse conheço
pouco. O padre Gwengere conheço relativamente bem. Sei que há
moçambicanos que estão a trabalhar numa biografia dele e penso que é uma
boa coisa se for feita a sério. Para mim, Gwengere é um caso muito
interessante para entender a história recente de Moçambique. É uma
pessoa que pensava de maneira diferente e ele desencadeou, e talvez
ainda desencadeia, paixões muito fortes (pró e contra). Ele cristalizou
vários problemas dentro e fora da Frelimo, em relação ao assunto da
religião, da “raça”, da nação, da estratégia militar, problemas que ele
pensava de maneira diferente de certos líderes da Frelimo. Ele nunca
trabalhou para a PIDE, mas veio a ser acusado disto e veio a ser
apresentado depois da independência como um dos principais traidores da
nação. Porquê? Como? Estudar Gwengere pode ser uma maneira interessante
de estudar a diversidade de pensamento dentro do nacionalismo, assim
como a dinâmica das ideias dentro de Frelimo, e dentro doutros grupos de
nacionalistas. Mesmo os erros do Gwengere, durante a transição de
1974-75, são interessantes para o historiador. Porque voltou à Beira?
Porque não tentou restabelecer pontes com a Frelimo? Porque não desistiu
da política e ficou padre de vez? Como a Frelimo conseguiu
marginalizá-lo na própria Beira?
Canal:
Mas o Professor pensa que seria interessante estudar este outro lado da
história dessas pessoas que pensavam diferente, e que saíram
perdedoras?
Dr. Morier-Genoud:
É de facto interessante. Olha que tivemos o caso da reabilitação, entre
aspas, que o Barnabé Nkomo fez do Uria Simango. E que teve muita
aceitação e trouxe um debate muito interessante sobre o nacionalismo. E
penso que foi uma obra que quebrou de maneira importante o monolitismo
da história de Moçambique. Foi um debate muito interessante. Mas não é
meu papel fazer isso.
Canal: Porquê não escreve sobre essas figuras?
Dr. Morier-Genoud: A
questão para mim não é tentar reabilitar essas figuras, ou não, e fazer
uma história que chamaria de contrária. Isto é, contrária no sentido de
que quando antes dizia-se que Simango era traidor, agora é grande
nacionalista, quando antes dizia-se que a Frelimo era boa, agora vamos
dizer que a Frelimo era má (ou menos boa). Barnabé Nkomo foi acusado por
alguns académicos de fazer uma tal história contrária. Como eu disse, o
livro trouxe um debate muito interessante, mas como historiador tem
problemas e eu tento fazer outra coisa.
O
meu livro e a minha tentativa como historiador é de incentivar outros
historiadores, não estou a dizer políticos, mas historiadores a adoptar
outra perspectiva. Estudar como é que o povo aderiu ao nacionalismo,
como é que as mulheres ajudaram e moldaram o nacionalismo, como é que
uma cultura nacional emergiu e foi forjada por actores em Moçambique,
quais foram as correntes dos nacionalismos (nacionalismos com ʺsʺ) em
Moçambique e outros países. Isto é, nem uma história contrária, nem uma
história do nacionalismo feita só através da história dos líderes.
Canal:
Voltemos ao livro que o Dr. lançou. Num dos capítulos de autoria de
Georgi Derlugian, é feita uma reinterpretação das divisões ocorridas no
seio da Frelimo em 1968. Notamos que Derlugian faz uma reinterpretação
que vai muito ao encontro da posição defendida pelos que saíram
vitoriosos no contexto das lutas internas na Frelimo. Será correcto
concluir que não houve uma preocupação do editor da obra em apresentar
os pontos de vistas, as teses, da outra parte?
Dr. Morier-Genoud: Como
eu disse, não estou interessado em fazer uma história de um lado ou
doutro lado. Estou a tentar fazer um outro tipo de história. Falei dos
brancos em Angola, mas deixe-me dar um outro exemplo que pode
interessar. Há um partido que a gente não fala na história do
nacionalismo em Moçambique e cuja consideração pode levar a encarar o
nacionalismo duma outra forma. Por exemplo, o Mozambique African
National Congress (MANC) foi criado no início de 1963 na Rodésia. A
UDENAMO já havia saído da Rodésia para a Tanzânia e o núcleo de
Moçambicanos que havia ficado no país criou este novo partido com base
em imigrantes do centro do país (sobretudo senas, chuabos, e
achikundas), com Peter Balamanja como presidente. O Partido teve muita
aceitação e teve bons contactos internacionais, sobretudo na Zâmbia e no
Malawi. Até que o Blamanja foi convidado para em 1963 ir a Londres. Aí a
PIDE ficou assustadíssima e fez tudo para que os líderes fossem presos e
o partido banido na Rodésia, o que conseguiram. O partido ficou
abalado, mas continuou na Zâmbia. O partido nunca teve a oportunidade de
entrar na Frelimo por que foi criado depois das negociações em
Dar-es-Salam. O partido, portanto ficou confinada na Zâmbia e em 1965
coligou-se com os outros movimentos moçambicanos para criar o COREMO (ao
qual a Frelimo recuso aderir). O que significa? Que houve partidos
nacionalistas moçambicanos que não se uniram à Frelimo e que não foram
dissidentes da Frelimo. Portanto, o COREMO também não foi só um partido
dos dissidentes da Frelimo. Mais, nota que o MANC desenvolvia outro tipo
de ideologia comparado à Frelimo e outros partidos dissidentes, sendo
abertamente pan-africanista. Aí está, portanto, uma parte da história
que tem a ver com o País mas que as pessoas pouco conhecem ou não
consideram. Para mim, é interessante e importante tentar estudar todas
as correntes do nacionalismo, e estudar as correntes que a gente
esqueceu, e que muitas vezes fracassaram. Mostra que a dinâmica do
nacionalismo era muito mais larga do que os “bons” e os “maus” dentro da
FRELIMO, os dissidentes e não dissidentes. Há partidos que foram
criados mas que nunca foram dissidentes. Em suma, da mesma maneira que a
história dos brancos nacionalistas na Angola abre novas perspectivas, a
história do MANC mostra a multiplicidade do pensamentos nacionalistas,
os diferentes caminhos que existiram na história do nacionalismo
moçambicano, caminhos alguns que tiveram sucesso, outro que fracassaram,
mas que fazem todos parte da história, uma história mais complicada,
complexa e menos linear.
Canal:
O livro faz também referência à guerra civil no nosso país. Para além
de Georgi Derlugian, também há o contributo de Michel Cahen. Nota-se no
livro editado por si que continua a haver uma certa preocupação por
parte dos intelectuais do Ocidente em rotular o movimento Renamo de
acordo com os que a apoiavam, e não segundo os ideais que defendia e
pelos quais lutava, que era o estabelecimento de uma ordem democrática
no nosso país. Não havia condições internas para a luta da Renamo, esta
surgiu devido à agitação externa, somente?
Dr. Morier-Genoud: É
um assunto de debate muito grande. E há muita discordância. No início
da década de 90 houve muitas revistas e livros publicados aqui e lá fora
que contribuíram para esse debate. Como resultado, houve uma mudança de
como a gente encara a história da Renamo. O pensamento dominante hoje
já não é de dizer que a Renamo é só uma criação da Rodésia. O que a
maioria dos académicos concorda agora é dizer que foi criada pela
Rodésia, que a África do Sul levou a Renamo para a África do Sul com a
Rádio África Livre após 1980, mas que depois dos (acordos de) Inkomati a
Renamo começou a levar uma dinâmica mais própria e a guerra desenvolveu
uma dinâmica mais interna. Acho que a maioria das pessoas concorda hoje
em dia que foi uma guerra de desestabilização no início, mas que virou
guerra civil a partir de uma certa data, data que a gente ainda vai
debater, mas eu diria que foi por altura do Acordo de Inkomati (1984).
Este é o pensamento dominante entre os historiadores.
Agora
os ideais da Renamo? Bem, vale a pena sublinhar aqui que fazer a
história da Renamo é complicado, porque não há arquivos da Renamo
conhecidos ou, se existem, não estão abertos. A Renamo também não tem
história própria, oficial ou não. O que dificulta o trabalho sobre a
história da Renamo, e a história das ideias ou da propaganda deste
movimento. Os historiadores têm que trabalhar nos arquivos do Estado
sul-africano ou nos arquivos do Estado moçambicano, e estes arquivos têm
documentação que tem uma perspectiva muita colorida. A única forma,
portanto, de fazer uma história com “documentos” da Renamo é fazer
muitas entrevistas, o que leva tempo. Era bom que a Renamo abrisse os
arquivos dela se existirem e que ajudasse mais os historiadores a fazer a
história dela e portanto a história recente do país.
Canal:
Porque é que não há, por parte de certos intelectuais do Ocidente, a
mesma tendência de se rotular uma Frelimo segundo os apoiantes que teve
desde a sua fundação, e que são muitos e variados: americanos, chineses,
soviéticos, cubanos... etc.? A Frelimo também não foi criada em
Moçambique…
Dr. Morier-Genoud: Em
parte tem razão. A Frelimo talvez não tivesse conseguido ganhar a luta
de libertação se não fosse a Tanzânia. Houve a Zâmbia, mas estava muito
apertada para não dar apoio. Portanto, não há dúvida que se não fosse a
Tanzânia a Frelimo não teria conseguido. Mas aí o assunto é mais
complicado, quando estamos a falar da criação. A FRELIMO não foi criada
pela Tanzânia. Havia movimentos nacionalistas que foram para a Tanzânia,
a UDENAMO, MANU, UNAMI e estes juntaram-se, sob orientação da Tanzânia.
Já não se pode dizer a mesma coisa em relação a Renamo. Não havia lá
partidos ou movimentos preexistentes. Havia no melhor um punhado de
indivíduos que estava a querer montar um movimento de oposição ou de
guerrilha. Portanto, a Renamo foi mesmo criada pela Rodésia. E aí é onde
acho que há uma diferença qualitativa. Sei que há gente que vai
discordar comigo, mas penso que é uma diferença qualitativa. Agora, há o
facto, e há a interpretação do facto. Isso é: eu não sei se o facto de a
Renamo ter sido criada pelos rodesianos lhe tira toda e qualquer
legitimidade para sempre. Há quem acha que sim, outros que acham que
não. Este julgamento já e muito político. Portanto, há o facto, e há a
interpretação do facto.
Canal:
Para quando uma perspectiva mais abrangente da parte de quem estuda e
escreve sobre Moçambique? Dr. Morier-Genoud pensa em escrever uma
história mais inclusiva que fale de todos?
Dr. Morier-Genoud: A
história é sempre escrita e reescrita. Não há ponto de chegada. Porque
os historiadores mudam, as teorias mudam, a forma como vemos o passado
muda, e as fontes mudam. A gente revê a história constantemente. Até a
história da Frelimo não é a mesma que a gente e a própria Frelimo
escrevia há 20 anos atrás. Agora escrever uma história mais abrangente:
penso que várias boas histórias de Moçambique já foram feitas O que eu
estou a tentar fazer com este livro que editei é sair dessa dinâmica
binar e linear sobre o nacionalismo, de dizer que este tinha razão,
aquele não tinha razão, este era legítimo, este não, este foi bom, e
este foi mau, tudo julgado à luz do momento do discurso, lendo o passado
à luz de hoje. Eu quis promover outro tipo de história, que não esteja
tão preocupada com a política no sentido restrito do termo, e que
estudasse o processo histórico da formação da nação, a emergência duma
cultura nacional, que restabelece o pluralismo dos pensamentos, que
situa a luta da Frelimo e dos outros nacionalistas no contexto global da
época, nos debates de ideias de então, etc.
Penso
que da mesma maneira temos que começar a fazer a história da última
guerra, e da Renamo, de maneira menos apaixonada, nós como
historiadores. Fazer uma história militar e política certa, mas também
uma história da ecologia, do campesinato, das mulheres, das ideias, das
crenças tradicionais, uma história local, talvez até biográfica, que
enriquece o nosso entendimento.
Canal: Mais algum dado para acrescentar?
Dr. Morier-Genoud:
Espontaneamente aqui não pensei em nada particular. (pausa). Talvez a
ideia de que o nacionalismo é uma coisa muito viva em Moçambique, hoje.
Não só em Moçambique mas em Angola, e na África Austral em geral. Este
livro intervém neste contexto e uma das ideias nossas foi de tentar
abrir um pouco o debate, para mostrar a diversidade, as múltiplas
possibilidades, que existiram no passado e que existem hoje para o
futuro, para incluir as mulheres no debate, o papel das mulher no
nacionalismo, na nação, assim como o papel da juventude, etc. Para não
só celebrar a luta de libertação de maneira teleológica ou como sendo
unicamente lugar de origens do presente, mas como lugar complexo e
múltiplo, na base de um olhar para frente, base de uma reflexão sobre o
futuro. Sobretudo que temos o petróleo que está a chegar, o gás, as
minas, temos um futuro que é promissor, mas que vai trazer muitos
desafios. E a questão é: qual é a nação que a gente quer para este
futuro, com quais valores, com que tipo de relações entre regiões ou
entre gerações? Com que modelo de distribuição das riquezas? Uma nação
inclusiva, unida, multicultural, pluricultural, outra?
Canal:
Acha que estamos a construir uma nação inclusiva em Moçambique do ponto
de vista político, económico e regional se olhar para o rumo que o país
está a levar…?
Dr. Morier-Genoud:
Penso que em relação a uns anos atrás, a situação é melhor. Pelo que eu
vejo, a situação é mais inclusiva. Vejo que muitos moçambicanos na
diáspora voltaram, os moçambicanos da Renamo voltaram. Estamos numa
situação muito melhor do que há 25 anos atrás. Ao mesmo tempo toda a
gente sabe que o partido no poder tem um papel muito preponderante e com
peso na sociedade, talvez, maior do que devia ser. Quem não dá apoio
(ao partido) e quem não concorda ou discorda abertamente pode ter
dificuldades. Há também uma distribuição bastante ilegal das riquezas.
Portanto, penso que há mais que a gente possa fazer.
Canal: O que é preciso fazer para inverter esta situação que acabou de descrever?
Dr. Morier-Genoud: Isso
é uma coisa que os moçambicanos devem decidir e resolver. Eu sou
convidado no debate, tenho que respeitar as regras da hospitalidade…
Canal: Mas a sua opinião como académico. O que aconselha os moçambicanos a fazer?
Dr. Morier-Genoud:
(Risos…) nada, não vou entrar nesse debate. Mas talvez uma outra coisa
que queria dizer, que muito me interessa e que acho interessante em
Moçambique em relação à luta anticolonial, mas raramente em relação ao
período anterior. Ora, para mim era interessante reflectir nisso. O
período pré-colonial. Estive na Nigéria e lá há um orgulho da história
pré-colonial, que aqui não se vê tanto. Até há museus sobre o período
pré-colonial!
Canal: O que iríamos encontrar nesse período de interessante?
Dr. Morier-Genoud:
Penso que é um período muito complicado. Há coisas positivas, mas
também muitas divisões e conflitos. Portanto íamos encontrar de tudo e
não está claro o que íamos ganhar e perder no processo. Depende da
análise e dos debates que se seguiriam. Hoje em dia há celebrações do
Makombe e do Gwaza Muthini, entre outros. Mas há muito mais do que estes
“heróis” encarados unicamente como proto-nacionalistas. Há períodos
anteriores, e há outras figuras para considerar e debater. Portanto há
riqueza a esse nível.
Canal: Quais as hipóteses que, como estudioso, o Professor levanta para justificar este esquecimento do período pré-colonial?
Dr. Morier-Genoud: É
um período de muitos conflitos com o Mfecane, o Ngungunhane, e muitas
outras guerras no sul, no centro e no norte do país. Portanto, neste
período não vamos encontrar uma unidade já feita e desejada. Penso que é
uma das principais razões pela qual a gente não vai a este período de
“divisionismo”. Mas ao mesmo tempo eu vejo o assunto de maneira
diferente, talvez com razão, talvez não. A minha impressão é que ao
debater este passado pré-colonial, os moçambicanos iam poder imaginar
uma nação diferente, mais profunda, mais larga, e talvez mais dinâmica. (Borges Nhamirre / Canalmoz / Canal de Moçambique)
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