Argumentamos igualmente que a “promoção da insegurança” constitui um arremesso político de capital importância que confere tanto a Frelimo e Renamo o monopólio do campo político, remetendo o resto dos partidos e sociedade ao papel de meros espectadores.
A desordem funciona na política moçambicana e é dentro dela que se operacionaliza todo o quadro neopatrimonial das relações políticas e económicas dos principais actores. Só conhecendo os contornos da praxis do paradigma neo-patrimonial e da instrumentalização da desordem é que poderemos aferir a inteligibilidade do político em Afonso Dhlakama.
CONTRA A “HISTÓRIA POR ANALOGIA”
A maioria dos “académicos” e cientistas sociais moçambicanos têm imensas dificuldades (havendo mesmo alguns incapazes) para comentar com consequência e rigor necessários os recentes pronunciamentos “belicistas” de
Afonso Dhlakama, incorrendo assim em análises moralistas e contraproducentes; confundindo a sua opinião meramente política com a académica.
Pela televisão, alguns académicos qualificaram os pronunciamentos de Dhlakama como “simples actos de desespero”. Outros ainda e mais peremptórios, chegaram a afirmar: “os seus últimos pronunciamentos eram sinais de que a Renamo não tinha futuro” e andava agonizante”. E outros trataram de recordá-lo o país “tem leis” que devem ser cumpridas.
Nós somos da opinião de que compete aos académicos, investigar, por exemplo, a relação entre o discurso “belicista” de Dhlakama e o contexto político que o torna possível e confere-lhe racionalidade. Mas não lhes compete transformar essa investigação num receituário de preceitos morais; não lhes compete trabalhar para os «fins», subordinar a investigação aos «fins últimos e nobres», só para citar o decálogo do cientista social Professor Carlos Serra.
Portanto, o grande desafio para os académicos moçambicanos – a maioria deles – reside na sua coragem em resistir à sedução de serem ao mesmo tempo “académicos e políticos; ou, dito de forma mais grosseira, de serem inadvertidamente porta-vozes de interesses políticos.
A dificuldade em aferir a inteligibildiade do político em Afonso Dhlakama é quanto a nós um procedimento meramente opcional, portanto político, como resultado da influência das clássicas análises a que Mahmood Mamdani chamou por “história por analogia”, que consiste na tendência de ver as coisas africanas na perspectiva de um tipo ideal da democracia liberal ocidental”. O risco dessa abordagem encontra-se no seu anacronismo implícito caracterizado pela transferência de características e atributos indevidos a processos e fenómenos inferenciados; neste caso, a “decepção dos intelectuais e académicos em não verem “realizados” em Dhlakama, os atributos que fazem o tipo ideal de um líder da oposição numa democracia moderna.
Nós argumentamos que Afonso Dhlakama até pode ser um irracional mas os seus pronunciamentos são funcionais ao sistema político (e por isso racionais) tendo em conta o paradigma da instrumentalização da desordem, avançado por Patrick Chabal e Jean- Pascal Daloz em que a “promoção da insegurança” constitui um arremesso político funcional tanto para Dhlakama como para o partido no Poder, no quadro de um neopatrimonialismo institucionalizado. Mas atenção, isso não significa que os pronunciamentos de Dhlakama fazem parte duma lógica de reprodução dum sistema político que favoreça aos dois partidos. Pelo contrário, eles documentam o grande problema do país, que é a ausência de um espaço público estruturado em torno de questões úteis.
Portanto, não se trata de glorificar ou diabolizar Dhlakama, acto a que não temos vocação, mas sim buscarmos através do funcionalismo e do paradigma da instrumentalização da desordem, uma abordagem eclética e fecunda capaz de restabelecer a legitimidade do político em Moçambique.
O discurso político de Afonso Dhlakama é funcional e mutuamente benéfico tanto para ele como para a Frelimo e Governo do dia pois dele ambos tiram dividendos políticos que de outra forma não seria possível, ou no mínimo, seria difícil. É na “desordem”, no discurso militarista, na promoção da insegurança e no “recordar” dos Acordos gerais de Paz de Roma que Dhlakama encontra a sua legitimidade de líder da oposição, homem forte e insubstituível da Renamo. É na arbitrariedade e na “violência simbólica” que à todos embaraça que ele se destaca como o único capaz de dominar um tema que nenhum outro político da oposição, incluindo os seus correligionários domina.
Mas ele fá-lo na plena consciência de encontrar do lado da Frelimo um espaço para “negocear” (negociar, leia-se) seja o que for, a bem da Paz. A isto se chama instrumentalização da desordem. A promoção da desordem no discurso de Dhlakama serve para que tanto a Frelimo como a Renamo, mas principalmente Afonso Dhlakama “reafirmem” o seu compromisso pela paz e estabilidade nacional, ao mesmo tempo que aproveitam para reclamar o seu espaço, delimitando e monopolizando o jogo e discurso num campo político onde apenas eles cabem.
Não admire por isso que ele tenha “jurado” não voltar à guerra e ter manifestado a sua vontade em “nogocear” a instalação ou não de quartéis. Não admire ainda que a Frelimo tenha respondido com “desprezo” apreciável as suas declarações não tendo daí apurado as devidas consequências previsíveis. Ademais, não admire que Dhlakama seja a única figura política que diz claramente ser possuidora de um exército bem armado sem que se lhe assaque as responsabilidades num Estado soberano. Por fim e baseando-nos na história de todo o processo de paz e da consolidação da democracia, as declarações “belicistas” e atípicas de Dhlakama sempre tiveram consequências de difícil verificação, apesar de todas terem sido resolvidas à mesa das negociações, anunciadas ou não.
Decorrente disso, podemos com uma margem de conforto afirmarmos que tratando-se de “assuntos” que só a Frelimo e Dhlakama conhecem com melindre e detalhes necessários e sendo eles os únicos actores elegíveis para a “solução” dos problemas, estamos perante um pacto de regime do tipo novo, caracterizado pelo monopólio do campo político de que ninguém mais tem acesso para competir.
Assim, procede-se à “privatização da História” e do seu património, colocam-se “todos os meios disponíveis e possíveis para a preservação do bem comum – a PAZ”, PAZ essa “posta em causa” com a “insegurança” promovida no discurso do líder da Renamo, Afonso Dhlakama.
Assim, a manutenção estratégica de “homens armados” da Renamo; da Guarda de Dhlakama; das bases da Renamo em Cheringoma, Maríngue e outros cantos; a “complacência” nas arbitrariedades cometidas por “homens de Dhlakama” quando prendem Polícias da República de Moçambique ou a “compreensão” de Dhlakama quando lhe “roubam votos” em cada pleito eleitoral; a manutenção das verbas do Estado canalizadas ao Partido Renamo independentemente do número de deputados na Assembleia da República constituem o conjunto de elementos operacionalizantes deste “pacto de regime” que a todos beneficia.
Assim, a promoção da “violência” no discurso de Dhlakama constitui um exercício periódico, previsível e bem enquadrado no âmbito do paradigma da instrumentalização da desordem do qual e a partir do já traçado ritual, todos saem a ganhar.
DHLAKAMA COMO GARANTE DAS VITÓRIAS DA FRELIMO
“Tombado” no campo essencialmente político, Afonso Dhlakama precisa sobreviver como tal. Mas também o fará à custa do desenvolvimento do seu Partido, a Renamo e por extensão de toda a oposição. E esse é o preço da democracia; o prémio da Frelimo.
Dispensado seria narrar todo o percurso criativamente destrutivo por que o movimento passou e passa até hoje, desde que se transformou em Partido Político, indo desde a perda de quadros de topo, expulsões arbitrárias, raquitismo organizacional, falta de liderança e arbitrariedades administrativas, inércia programática, informalidade na acção política quando ela existe.
Porém, apesar de toda essa desorganização, Afonso Dhlakama sempre quedou-se em segundo lugar tal como a Renamo e em todas as eleições. Mesmo não reconhecendo a vitória, os seus deputados tomam posse e ele “perdoa a Frelimo” para o bem da Paz. E para um Partido Político como a Frelimo, uma galinha de ovos de ouro como essa nada mais há a fazer senão criá-la carinhosamente, protegendo-a de todos os perigos, tanto internos como externos. E há quem diga que a Renamo é ciclicamente destruida por dentro através das acções de espionagem e sabotagem perpetradas por agentes infiltrados na organização. Mas esse é outro assunto para a polícia.
DHLAKAMA RECONQUISTA “ESPAÇO” E SUBMETE O MDM AO “INVERNO”
Podíamos rebuscar o argumento lançado no princípio para usá-lo de outra forma. Até a bem pouco tempo, o debate político girava em torno das actividades do MDM – saída de Ismael Mussá, reorganização, os preparativos do X Congresso, etc.
Porém, a aparição de Afonso Dhlakama fez “evaporar” todo o protagonismo dos então assuntos, recolocando-se ele mesmo no centro das agendas. Isso vale, em política. E julgamos ser ele o assunto mais falado na actualidade. Assim, Dhlakama prova-nos mais uma vez ser um “animal político actual”, que mesmo fazendo a política de forma atípica, continua a granjear interesse a todos níveis.
Nós mesmo, já tinhamos avançado muito com uma outra reflexão que tinha como título: “enterrando Dhlakama como objecto de análise política”. Contudo, reflexões ulteriores provaram que estávamos no caminho errado.
A inteligibilidade do político e do seu campo em Moçambique não se apreendem “por analogia”. Não está em causa o que ele anuncia e sim o alcance político e as suas implicações no jogo, pelo que a contradição implícita em Dhlakama sugere estarem em jogo outros interesses políticos e de poder. Não está em causa o conflito ou a Paz; homens armados e desmobilizados da Renamo ou da Frelimo – estando todos esses aspectos claramente ultrapassados ou no mínimo passíveis de uma solução sem recurso á violência. A ser verdade, deviam ter merecido atenção logo nos primeiros dez anos de Paz. Porém, o que escapa à análise de muitos é a dificuldade em ver esses aspectos todos como arremessos políticos que devolvem Dhlakama a um campo político hegemónico do qual monopoliza, para dele tirar benefícios políticos.
A promoção da insegurança é uma característica prevista no paradigma de instrumentalização da desordem. A desordem funciona na política moçambicana e é dentro dela que se operacionaliza todo o quadro neo-patrimonial das relações políticas e económicas dos principais actores. Só conhecendo os contornos da praxis do paradigma neo-patrimonial e da instrumentalização da desordem é que poderemos aferir a inteligibilidade do político em Afonso Dhlakama. Claro, existe outra forma, remetê-lo á “ausência,” mas valerá a pena?
*Egídio G. Vaz Raposo é historiador e consultor de comunicação
Savana – 26.08.2011
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