Vala comum vira refúgio dos sem posses
— No mês passado, 400 corpos foram enterrados na sepultura de indigentes no Lhanguene
Por Raul Senda
O número de corpos que vão a enterrar na vala comum do Cemitério de Lhanguene, na cidade de Maputo, está a crescer em grande escala. São corpos de velhos, adultos, jovens e crianças de ambos os sexos que diariamente vão a enterrar naquele local. No passado mês de Julho, um total de 397 cadáveres foi sepultado na vala comum.
Trata-se de um fenómeno estranho e preocupante, mas que ninguém encontra uma resposta clara para explicar a situação. Uns dizem que o facto deve-se à pobreza e outros negam, referindo que há valores que a pobreza nunca pode superar. Lamentações e reclamações também não faltam. O município de Maputo diz que arca com as despesas que devia compartilhar com outras instituições. As autoridades da Saúde referem que a sua missão termina na altura em que o corpo sai do hospital, enquanto que a Polícia diz que só tem a ver com casos em que haja suspeitas de crime.
Tudo começa com toda normalidade. Há sensivelmente dez anos, o camião da Direcção de Saúde e Salubridade do Conselho Municipal da Cidade de Maputo passava uma vez por mês pelas morgues dos principais hospitais da capital para carregar os corpos não reclamados.
Cada vez que o tempo ia passando, a rotina também mudava. O camião passou a visitar as morgues duas vezes por mês. Depois passou para uma vez por semana. Como o número de indigentes estava a aumentar, a recolha de cadáveres das morgues para a vala comum transitou de duas vezes por semana para todos os dias.
De segunda à sexta-feira, um camião cinzento e com deficiências mecânicas deixa, por volta das nove horas da manhã, o Cemitério de Lhanguene, rumo às diferentes unidades hospitalares das cidades de Maputo e Matola. Três horas depois, regressa ao mesmo local, carregado de corpos não reclamados, para depositá-los numa vala comum com uma profundidade de cinco metros, quatro de comprimento e dois de largura. É uma cruel realidade, onde nem crianças escapam.
Na última semana, a reportagem do SAVANA esteve no Cemitério de Lhanguene para testemunhar a sepultura colectiva destes corpos não reclamados, tendo também se deslocado às principais unidades hospitalares da cidade de Maputo.
Foi durante estas visitas que fomos informados de que, devido ao crescente número de corpos não reclamados que dão entrada nas suas morgues, as direcções dos hospitais decidiram determinar o tempo em que um corpo deve permanecer nos seus sistemas de conservação.
Assim, quando um corpo sem vida cai nas morgues é mantido no sistema de conservação durante quatro dias. Findo este prazo, os corpos não reclamados são retirados do sistema de conservação e amontoados num outro lugar, antes de serem recolhidos para a vala comum.
Trata-se de um compartimento que não oferece as mínimas condições de conservação de corpos, razão pela qual, quando os cadáveres são lá depositados, eles não podem permanecer por muito tempo, sob o risco de se decomporem e libertarem um cheiro nauseabundo, pondo em perigo a saúde dos funcionários ali afectos.
Nestes locais, os corpos são "isolados" em sacos pretos, à espera do camião para a sua recolha para a última morada.
Na vala comum é onde se assiste a verdadeira humilhação da dignidade humana. Aqui os corpos são atirados para a cova da mesma maneira que animais dizimados por uma peste.
Administrador do cemitério
Alexandre Libombo é administrador do Cemitério de Lhanguene. Foi com este homem que o SAVANA tentou entender a dinâmica, o funcionamento da vala comum, a origem dos corpos, as causas de morte, bem como o sexo dos mortos.
O cenário que se vive na vala comum é bastante preocupante, diz Libombo.
Sublinhou que, para além do elevado número de corpos que diariamente vão a enterrar na vala comum, o cemitério debate-se com sérios problemas de falta de espaço para abertura de mais valas.
Nos dias de hoje, para conseguir enterrar mais corpos, os gestores do cemitério são obrigados a abrir sepulturas nos mesmos lugares em que anteriormente estiveram abertas outras valas.
Diz Libombo que é uma vergonhosa realidade. E acrescenta, a forma como as coisas se apresentam não abre espaço para que aspectos morais sejam levados em conta.
É que por aquilo que é a exigência de uma vala comum, esta nunca podia ser aberta perto das campas ou em outro lugar onde as pessoas frequentam. Tinha que ser num lugar isolado porque a forma como aqueles corpos são levados para a sua última morada não é justa, razão pela qual não fica bem que as pessoas tenham que assistir a esta triste realidade.
"O número de corpos por enterrar na vala comum está a subir cada dia que passa, e nós não temos mais espaço. O cemitério está cheio, e para garantir o depósito de outros corpos somos obrigados a exumar os antigos", diz.
O SAVANA foi informado de que 90 corpos foram atirados para a vala comum em Abril. De Maio a Julho, o total foi de 547, uma média mensal de 182,3.
Os principais contribuintes são o Hospital Central de Maputo, os Hospitais Gerais de Mavalane, José Macamo e Machava, e ainda o Centro de Saúde de Bagamoyo.
Terceira idade e recém-nascidos
Embora os dados a que tivemos acesso não discriminem os corpos por sexo ou idade, soubemos que a maioria é constituída por cadáveres de pessoas da terceira idade. O segundo grupo é constituído por bebés recém-nascidos, seguido de jovens. O maior número é do sexo masculino.
A direcção do cemitério nunca é informada das causas de morte, uma vez que estas constam do boletim de óbito, que fica depositado no hospital.
Contudo, Libombo diz ter informações que indicam que, para além de doenças, muitas mortes são resultado de atropelamentos e consumo excessivo de bebidas alcoólicas e outras substâncias tóxicas.
Acrescenta que o alastramento do HIV/SIDA é outra das principais causas. E explica que isto se deve, em parte, ao facto de que muitas pessoas que morrem de complicações relacionadas com o HIV/SIDA permanecem durante muito tempo nos hospitais, esgotando os parcos recursos de que as suas famílias dispõem, e levando ao seu abandono nos leitos hospitalares.
Em muitos destes casos, os familiares simplesmente ignoram a informação que recebem sobre a morte dos seus ente queridos, deixando tudo ao cuidado do Estado.
Libombo atribui este fenómeno ao crescimento do nível de pobreza nos meios urbanos e semi-urbanos.
"Independentemente da idade, o normal é que quando a pessoa morre tem direito a um funeral condigno", diz Libombo. "Mas nos últimos dias esse princípio é ignorado devido à falta de condições financeiras".
Coveiros sem equipamento
Outro pormenor que o SAVANA verificou no Cemitério de Lhanguene é que, apesar do risco que correm, os trabalhadores encarregues de enterrar os corpos na vala comum não têm nenhum equipamento de protecção tal como luvas, máscaras e botas.
Libombo reconhece que a situação não é a ideal, mas diz que nada pode fazer sem os recursos necessários.
Agências funerárias
Se o Estado subsidiar, baixamos o preço das urnas
A Associação das Agências Funerárias de Maputo (ASAFUM) disse que não está à leste do sofrimento por que muitos cidadãos têm passado quando confrontados com a morte de um ente querido. Contudo, disse o porta-voz da associação, Samuel Banze, nada podem fazer, uma vez que a produção de urnas tem custos que não podem ser contornados, a não ser que o Estado intervenha com um subsídio.
De acordo com Banze, o custo básico de uma urna é de 1 450 meticais.
"Aqui, a margem de lucro é de 150 meticais. É desse valor que os proprietários das casas funerárias devem pagar os seus trabalhadores, impostos e transporte da matéria-prima", frisou.
Ainda de acordo com Banze, um metro quadrado de toro custa 900 meticais. Isto é suficiente para a produção de quatro urnas básicas. Ao custo do toro devem ser adicionados os desperdícios no processo de serragem, e ainda os pregos, o verniz e outros acessórios.
"São custos operacionais que as pessoas no momento de aflição ignoram, e atiram as culpas aos agentes funerários", salientou.
"A morte não é como uma festa ou casamento, que as pessoas se preparam atempadamente; é uma coisa que acontece bruscamente, e, muitas vezes, encontra as pessoas desprevenidas. Somos humanos e entendemos isso, mas a alternativa seria fechar o nosso negócio", disse Banze.
Arcamos despesas que devíamos compartilhar com os outros
Tal como o administrador do Cemitério de Lhanguene, o director da Saúde e Salubridade no Município de Maputo, Hafido Abacassamo, acha que o elevado número de corpos que vai à vala comum deve-se à falta de condições para se providenciar um funeral condigno.
Segundo Abacassamo, mesmo que haja vontade moral, a mesma é superada por dificuldades financeiras. Exemplificando, Hafido Abacassamo referiu que só o transporte de um corpo da morgue ao cemitério custa 350 a 500 meticais, e que uma custa, no mínimo, 1 600 meticais. "Esses valores são altíssimos para aquilo que é o grosso de muitos cidadãos moçambicanos", disse.
Acrescentou que o município sempre criou condições no sentido das pessoas realizarem funerais sem problemas, visto que as taxas que cobra são "super irrisórias". Por cada funeral o município cobra 75 meticais por um espaço que fica com a família do falecido durante cinco anos, porque depois desse tempo o espaço volta ao município.
Para o nosso interlocutor, a única saída é a intervenção de instituições competentes, porque, na sua óptica, aquelas pessoas em vida pagaram directa ou indirectamente algum imposto ao Estado. Abacassamo lamenta o facto de a sua instituição ser a única que arca com as despesas de transporte e colocação de corpos na vala comum, visto que, na sua óptica, há outras instituições públicas que deviam intervir, mas que se limitam a ignorar as suas responsabilidade.
Para além de custos provenientes da aquisição de combustíveis e outros equipamentos, Hafido contou-nos que o Cemitério de Lhanguene debate-se com sérios problemas de espaço, e que se o município tivesse algum apoio poderia também investir na instalação de um crematório, que poderia minimizar a crise da falta de espaço.
Há valores que nunca podem ser superados pela pobreza
Para o Sociólogo e Professor Catedrático Carlos Serra, é muito difícil que, em circunstâncias normais, e em função dos valores que são o cimento das famílias moçambicanas, se deixe um parente ser enterrado na vala comum.
Para Carlos Serra, o cenário é mais complicado ainda quando são várias pessoas que caem neste lugar. Refere que estes dados podem ser tomados como um indicador claro para se concluir que alguma coisa não está bem no seio das famílias.
"Quando no meio destes cadáveres há corpos de crianças em número significativo é outro dado que nos pode levar a concluir que se está perante uma anormalidade", disse.
Serra disse que não estava em condições de indicar os principais motivos destas causas, porque, para tal, precisaria de fazer um estudo que, na sua óptica, também seria um pouco complicado, porque parece que as famílias não se identificam.
"Não é normal que os corpos que vão enterrar na vala comum atinjam estas cifras, é anormalíssimo quando no meio há vários corpos de crianças. Diria que estamos perante uma anormalidade social que precisa de ser bem estudada", salientou Carlos Serra. Acrescentou que não é correcto precipitar-nos para apontar a pobreza como sendo a causa desta anormalidade social.
Falência de valores
Tal como o Professor Carlos Serra, João Nobre, antropólogo e docente da Universidade Pedagógica, é da opinião de que a melhor forma de tratar esse assunto seria uma pesquisa que analisasse o perfil das pessoas que vão à vala comum e daí é que se pode determinar se a causa de abandono é pobreza ou não.
Fazendo uma avaliação superficial, Nobre nega que a subida do número de corpos que vão à vala comum seja originado pela pobreza, porque, na sua óptica, nas nossas sociedades, há certos valores que superam a pobreza e providenciar um funeral condigno a um parente faz parte desses simbolismos que não se superam com muita facilidade.
A outra hipótese de João Nobre é de que este fenómeno pode significar a falência de valores que alimentam o simbolismo que está por detrás dos cuidados que as pessoas deviam ter para com outras numa situação de doença ou de morte.
"Duvido que se abandone um doente ou um morto por falta de condições financeiras para suportar as despesas, mas esse facto deve-se à falência de valores que alimentam a sociedade", disse.
Nobre sublinhou que o valor simbólico que se dá a este tipo de actos está muito acima do valor que damos a outros bens materiais, porque, na sua óptica, mesmo sem condições, quando há vontade, consegue-se superar esta dificuldade.
Para este antropólogo, a quebra do valor simbólico evidencia-se mais no ponto em que há muitas crianças que também caem na vala comum e isto mostra também aquilo que considerou de desmembramento das pessoas em relação às suas redes familiares, porque estes fenómenos mostram claramente que já não há união de famílias na sociedade.
Fonte:SAVANA
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