Por Joaquim M. Malola*
Em Moçambique há um enorme gap entre o que está escrito na lei e a realidade brutal da aplicação da lei. A nova constituição, promulgada em 1990 e revista em 2004, conseguiu incorporar muitos direitos individuais que foram violados sistematicamente no período não democrático. Os direitos à vida e à integridade pessoal foram reconhecidos. No entanto, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua.
Em Moçambique há um enorme gap entre o que está escrito na lei e a realidade brutal da aplicação da lei. A nova constituição, promulgada em 1990 e revista em 2004, conseguiu incorporar muitos direitos individuais que foram violados sistematicamente no período não democrático. Os direitos à vida e à integridade pessoal foram reconhecidos. No entanto, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua.
A questão que gostaria de formular neste texto é a seguinte: será que em Moçambique a transição de uma sociedade não democrática para uma sociedade democrática foi completa? Será que temos uma democracia consolidada? Para responder a isso, que reputo uma questão difícil, é preciso dar uma vista d’olhos um dos conceitos de Juan J. Linz e Alfred Stepan que definiram a transição democrática como um grau suficiente de acordo alcançado quanto a procedimentos políticos visando obter um governo político; quando o governo chega ao poder como resultado direito do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de gerar novas políticas; e quando os poderes Executivos, Legislativos e Judiciários, criados pela nova democracia, não têm que jure dividir o poder com outros organismos (1999, p.21).
Os autores vão mais longe ao afirmarem que uma democracia é consolidada quando: grande maioria de opinião pública mantém a crença nos procedimentos das instituições democráticas; em termos constitucionais, um regime democrático está consolidado quando tanto às forças governamentais quanto não-governamentais, sujeitam-se e habituam-se a resolução de conflitos dentro de leis. Procedimentos e instituições específicas sancionadas pelo novo processo democrático (LINZ; STEPAN, 1999, p.24).
Com essa definição operacional, vamos procurar responder as nossas indagações. Não obstante esse avanço democrático não se logrou a efectiva instauração do Estado de Direito. A pesquisa Nacional sobre governação e corrupção realizada em 2003, quase metade do número total de 2.500 inquiridos concordou ou concordou fortemente (47%) com a afirmação de que os tribunais são completamente dependentes do governo. Tantos os juízes como os procuradores entrevistados afirmaram receber chamadas telefónicas dos executivos durante os casos. Amplitude dos avanços registados nestas matérias é algo questionável para a nossa democracia. Que tipo de democracia queremos?
O poder emergente da transição democrática conquistou o monopólio do “uso legítimo da violência física” (WEBER, 1970; ELIAS, 1987), fora dos limites da legalidade. Persistiram graves violações de direitos humanos, violação das liberdades civis e políticas; o medo de represálias das instituições políticas e governamentais; repressões violentas nas manifestações. Estes acontecimentos são produto de uma violência endémica, radicada nas estruturas políticas, enraizada nos costumes da guerra civil e duma sociedade autoritária. O Open society foundation (2005) refere-se a esses acontecimentos como uma experiência política da continuidade autoritária. Essa continuidade manifesta quer no comportamento de grupos da sociedade civil, quer no dos agentes incumbidos de preservar a ordem pública. O controlo legal da violência permaneceu aquém do desejado.
O problema é que instalar um governo eleito democraticamente não necessariamente significa que as instituições do Estado irão operar democraticamente. Por exemplo, parece que em Moçambique não existi uma liberalização das organizações da sociedade que possa implicar uma combinação de mudanças sociais e de directrizes políticas, com menos censura por parte do governo; um espaço maior para a organização de actividades autónomas. O nosso país é uma sociedade que se baseia numa democracia sem cidadania.
As organizações da sociedade civil são formas que as pessoas têm de se organizar e se colocar como participantes activos na sociedade. Tenta com isso, tornar-se algo mais que simples sujeitos passivos do processo social, a firmando-se, em alguma medida, como agentes e protagonistas de seus destinos – por mais modesta que essa actuação de fato seja. Como diz Elísio Macamo a nossa ordem política tem que devolver a responsabilidade ao indivíduo (MACAMO, 2006).
Várias organizações de sociedade civil têm sido conotadas como fazendo parte de uma ou outra força política (PEREIRA, 2002). Esta situação tem contribuído para elevar o índice de desconfiança dos cidadãos nestas organizações - sobretudo para denunciarem casos de violação de direitos humanos, de arbitrariedade e de abuso de poder, exigiram das autoridades públicas o cumprimento de suas funções constitucionais -, pouco se avançou no sentido do controlo democrático da violação dos direitos humanos. Neste domínio, parece não ter havido efectiva desmobilização das forças repressivas comprometidas com o regime não democrático. Essas forças mantiveram-se presentes, acomodando-se ao contexto de transição política. Este breve painel permite clarificar que em Moçambique de facto não ocorreu uma transição democrática completa. Tudo indica que, no curso do processo de transição democrática, recrudesceu solução violenta dos conflitos sociais e de tensões nas relações intersubjetivas.
Segundo Linz e Stepan (1999, p33.) para que haja uma democracia consolidada deve ter cinco campos em interacção: sociedade civil - liberdade de associação e comunicação; sociedade política - competição eleitoral livre e inclusiva; Estado de direito – constitucionalismo; aparato estatal – normas burocráticas racionais e legais; sociedade económica – mercado institucionalizado.
Para falar como Elísio Macamo (2006) que do jeito que estamos e vamos à consolidação democrática será impossível. A nossa democracia é ainda deficiente para além de sério problema do subdesenvolvimento, de graves violações de direitos humanos que comprometem o mais elementar dos direitos, o direito à vida.
Esse painel deixa entrever que a nossa democracia tem carácter costumeiro, institucionalizado de um autoritarismo político que se revele com maior intensidade nos momentos de agudas crises de controlo do poder político, por exemplo, os casos da violência eleitoral resultados das segundas eleições presidenciais e legislativas de 1999 foram fortemente contestados pela Coligação Renamo-União Eleitoral (RUE), considerados fraudulentos, não obstante a sua revalidação pelo Tribunal Supremo. No ano seguinte, a mesma Coligação organizou manifestações gerais em todo o país, que acabaram provocando confrontos com a polícia nas cidades da Beira (centro do país) e Montepuez. Resultaram em cerca de mais de uma centena de mortes na cidade de Montepuez, na Província nortenha de Cabo Delgado (MAZULA; MBILANA, 2003, p3). Gerou-se um clima de medo e instabilidade naquela cidade e certa tensão política em todo o país. Anícia Lalá e Andrea E Theimer (2003) demonstraram no seu estudo Como limpar as nódoas do processo democrático? Os desafios da transição e democratização em Moçambique (1990-2003), que a democracia em Moçambique está longe de ser consolidada.
A incapacidade do judiciário de investigar e processar os responsáveis desse acontecimento é o exemplo da incompetência do nosso sistema legal. O nosso sistema da justiça criminal não investigou e nem processou os presumíveis autores dessa violação dos direitos humanos. O resultado é que os responsáveis continuam impunes e cometem outras violações. A nossa democracia não consegue controlar o poder dos executivos e da polícia faz com que persistam as práticas abusivas dos direitos humanos. De modo geral, não se vislumbrou, ao longo de todo o processo democrático, uma efectiva vontade política no sentido de consolidar o poder judicial.
Como forma de dar início ao debate gostaríamos de afirmar que o nosso grande problema foi no primeiro passo do processo de transição democrático não termos debatidos quer nas negociações de paz, quer no parlamento e em outro fórum próprio a questão da desconcentração do poder do executivo em relação a outras esferas de poder. Para falar como Eduardo J. Sitoe, a nossa democracia é uma democracia que apanha boleia da paz que veio da guerra civil.
Talvez as afirmações de Bernhard Weimar, fazem sentido para pensar a nossa transição democrática: (1) a nossa transição democrática veio de um acordo de paz, que definiu em termos estratégicos, o quadro geral do cessar-fogo da guerra civil; (2) a paz do partido no poder e seus governos consecutivos; (3) a paz da oposição para tratar dos assuntos de transformação de um movimento de guerra num partido político; (4) a paz relativa entre os beligerantes do acordo geral de paz na Assembleia da República; (5) a paz dos doadores; (6) a paz das comunidades rurais e dos camponeses e (7) a paz das comunidades religiosas. Isto tornou a nossa democracia ser redutível a um simples questão de eleições de partidos ou de presidentes.
Segundo Severino Ngoenha (1993, p.9), a democracia implica antes de mais o lugar que o povo tem de ocupar nas decisões dos problemas fundamentais que lhe dizem respeito e nos mecanismos jurídicos para que tenha um controle real sobre a realidade política, económica, social e educativa. Esta afirmação esta associado a ideia da independência entre os três poderes Legislativo, Executivo e Judicial, por exemplo tão bem estudado por Larry Diamond (1997),de que uma democracia requer, para além da competição eleitoral regular, livre, justa e de sufrágio universal, a ausência de dependência entre os três poderes. O cientista político Samuel P. Huntington (1993), nos lembra que não existe consolidação democrática quando não há uma mudança de uma democracia eleitoral para uma democracia liberal, uma democracia que permitirá a alargar as estruturas do processo democrático.
Para falar como Elísio Macamo temos que ter a coragem de arriscar mais democracia. A insistência num poder central desmensurado como prerrogativa do estado parece irracional. O nosso Estado não tem a capacidade de corresponder a tamanhas expectativas. E se não muda de concepção nunca, provavelmente, terá essa capacidade. A concentração do poder é uma cilada consciente na medida em que põe em perigo a soberania interna com a promoção duma relação patrimonial entre a sociedade e o estado (MACAMO, 2006).
* Malola é sociólogo, moçambicano. Extractos do texto publicado inicialmente no site Pambazuca News
SAVANA – 15.07.2011
Deixei ficar mais uma carta para ti:
ResponderEliminarhttp://meumundonelsonleve.blogspot.com/2011/07/e-essa-agora-as-mini-saias-foram-ou-nao.html