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VOA News: África

terça-feira, 19 de julho de 2011

Mulher Melancia versus Bispo Macedo

Por Marílio Wane*
Em Março deste ano, a cidade de Maputo viveu um inusitado encontro entre o sagrado e o profano. Para animar a noite de sábado dos maputenses, a sensual Mulher Melancia apresentou-se no Coconuts, famosa casa de espectáculos da cidade, e no domingo, foi inaugurado o Cenáculo da Fé, o maior templo da Igreja Universal do Reino de Deus no continente africano. A princípio, os dois acontecimentos não teriam nenhuma relação um com o outro não fosse o facto de serem indicadores da massiva presença brasileira no quotidiano dos moçambicanos. Inclusive, a diferença de propósito existente entre os dois reflete a diversidade com que se manifesta essa mesma presença; se ao nível macro, já temos o grande capital brasileiro e acções de cooperação de Estado nas mais diversas áreas, as duas visitas deram ainda mais a dimensão microssocial, quotidiana, deste encontro de culturas.

Na dimensão do profano, a exibição da Mulher Melancia fazia parte das comemorações do carnaval na cidade, porém, deve se dizer que Maputo não tem uma tradição forte em relação a essa festa popular, sendo mais correcto dizer que “carnaval” era muito mais uma forma de produzir um mote puablicitário para atrair as pessoas. Aliás, a principal referência dessa festa para os moçambicanos é justamente a do Brasil, a que tem acesso através da televisão. Para os que não conhecem, “Mulher Melancia” é uma personagem representada pela dançarina brasileira Andressa Soares, cujo nome artístico é uma referência à sua bunda avantajada. Assim, a principal atracção desta jovem é o apelo erótico explícito do seu show, tanto nas coreografias quanto nas letras das músicas, tendo sido bastante conhecida em seu país de origem pelo hit da “Dança do Créu”, lançado no verão de 2007/08.
Já na dimensão do sagrado, a inauguração de um templo de grandes dimensões da Igreja Universal do Reino de Deus só veio coroar a actuação incisiva desta instituição no país, a partir de fins da década de 1990. A solenidade do evento foi marcada pela missa ministrada pelo próprio Bispo Edir Macedo, fundador e principal líder da igreja, sendo depois recebido pelo Presidente da República, Armando Guebuza, em audiência oficial. Este facto, por si só dá mostras do prestígio de que a instituição goza entre as próprias autoridades moçambicanas, pretensamente por contribuir para o “desenvolvimento moral” da sociedade. Entretanto, o evento foi marcado por uma tragédia, pois duas pessoas morreram asfixiadas e outras quatro ficaram gravemente feridas devido à superlotação no templo. Segundo dados oficiais, havia 10 mil pessoas num espaço onde só caberiam 3 mil.
Deus e o Diabo no país da Marrabenta·
A presença de atracções como Mulher Melancia não é exactamente uma novidade para os maputenses. Ainda que não tenha havido muitas do género nos últimos tempos, em 2004, a “Tiazinha” – personagem encarnado pela “modelo e actriz” brasileira Suzana Alves – apresentou-se, também em meio às comemorações do carnaval. Assim como Andressa e seu personagem, Suzana também se valia da sensualidade como principal atractivo para o público, se bem que de forma bem menos explícita. No seu contexto originário, este tipo de atracções costuma dividir opiniões quanto ao seu suposto valor artístico. De um lado, há os que dizem que se trata de espectáculos apelativos de gosto duvidoso e não só, que significam um rebaixamento do papel da mulher na sociedade através da exploração comercial do(s) seu(s) corpo(s) e de outro lado, há os que apreciam o aspecto lúdico do erotismo e consideram como algo que não deve ser levado tão a sério.
No contexto de Moçambique, a princípio, as duas “cantarinas” provocam um choque cultural, não tanto por abordar a sensualidade ou o erotismo, dado que a música popular moçambicana contém esses elementos de sobra (tanto nas canções quanto nas danças). A diferença encontra-se na forma: o que atrai o público, jovem em sua maioria, e que certamente escandaliza os mais velhos, é a quase total nudez apresentada pelas cantarinas. A respeito disso, um dos poucos relatos e/ou resenhas “críticas” sobre a apresentação da Mulher Melancia foi feito por um brasileiro residente no país, em seu blog (blogdomoscou.blogspot.com), donde destaca-se esta passagem: “(...) ela queria fazer a segunda parte da apresentação de bikini, tipo tirar a roupitcha (sic) vermelha e dançar com o conjunto preto que estava por baixo, só que aki (sic) em Moçambique isto já é demais... o cara da organização, em off, censurou a ideia ainda durante a apresentação. Neste aspecto, acho que o Brasil está avançado ‘até demais’.
É justamente aí que se dá o choque cultural: apesar de o público moçambicano já estar habituado à nudez exaustivamente veiculada pela televisão brasileira neste tipo de atracções, a sua execução “ao vivo” abala sensivelmente os valores locais. Além do mais, o próprio blogueiro coloca outra questão muito importante em relação à sua própria cultura, qual seja, o ténue limite entre a liberalidade e a libertinagem. Questão essa que adquire novos contornos a partir do momento em que o Brasil exporta determinados valores que atentam contra o pudor em outras culturas. Aqui, há uma questão mais ampla sobre o impacto desta televisão no quotidiano local, que não se restringe só ao erotismo ou sensualidade explícitos. Muitos outros temas abordados na vasta programação a que se tem acesso, como por exemplo, a homossexualidade, a violência, as drogas, a corrupção, etc. Podem trazer distorções significativas quando “aplicados” ao contexto moçambicano. Importante frisar que se trata de uma relação desigual, onde não há exactamente uma troca de informação entre os dois países, o que ajudaria numa melhor contextualização dos conteúdos veiculados.
Num primeiro momento, “sagrado” e “profano” são termos antitéticos e até mesmo opostos, o que no nosso caso em questão, nos leva a pensar que a vinda da Mulher Melancia nada tenha a ver com a inauguração de um templo religioso. Mas talvez seja melhor pensá-los como termos dialécticos, envolvidos numa relação em que a existência de um sugere a do outro. Esta perspectiva pode nos ajudar a pensar naquilo que os dois eventos têm em comum: ambos estão ligados à presença da televisão brasileira em Moçambique, dado que num caso como no outro, este veículo de comunicação foi fundamental para a divulgação dos dois fenómenos, ainda que com propósitos diferentes. Mulher Melancia tornou-se conhecida por via de programas de auditório (e outras fontes também, como a internet) e a Igreja Universal é ela própria dona da Rede Record de televisão, que em 1999 criou como uma filial moçambicana: a TV Miramar . Portanto, estamos diante de um fenómeno de pouco mais de uma década, que por sua vez, remete à abertura política, social e económica que se deu a partir do início do década de 1990 em Moçambique.
Não se restringindo apenas ao nível macropolítico, esta abertura possui também uma dimensão cultural, se pensarmos que findo o regime socialista monopartidário (em 1992), os moçambicanos passaram a ter acesso a diferentes fontes de informação, para além daquilo que o controlo estatal permitia. É justamente aí que se abre espaço para a entrada da Igreja Universal e os seus veículos de comunicação no país. Aliás, é bastante notória a sua ampla penetração em vários países pobres do mundo, certamente em função do seu discurso religioso que apela para as questões quotidianas mais imediatas.
Diferentemente da retórica vazia do catolicismo actual, as correntes neopentecostais brasileiras conquistam grande número de fiéis muito em função da linguagem simples e pela promessa de alívio de problemas ligados à pobreza e à desigualdade social.
Porém, os “evangélicos” também são conhecidos em seu país de origem por actos sistemáticos de intolerância religiosa. Desde o famoso incidente do bispo Sérgio Von Helder que em 1995, chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida em seu programa de televisão na TV Record (“O Despertar da Fé”) até as recentes perseguições a terreiros de candomblé em Salvador, este grupo – especialmente a IURD – tem sido visto com reserva e desconfiança por outros sectores da sociedade. Deve-se sublinhar que parte do discurso religioso dos neopentecostais é claramente intolerante, particularmente em relação às religiões afro-brasileiras, o que torna bastante problemática a sua inserção em Moçambique. Há indicações de que essa mesma intolerância se reproduza localmente, em relação à espiritualidade e às religiões africanas, cujas práticas são desqualificadas como “coisas do Diabo”.
Que África é essa?
Paralelamente às questões propriamente religiosas, a actuação da Igreja Universal tem um grande impacto no país devido à grande audiência dos programas do seu canal televisivo. Entretanto, em relação a este episódio em particular, há um dado significativo a considerar; o canal Record News” veiculou uma reportagem bastante positiva sobre a inauguração do templo, inclusive, destacando a audiência do Bispo Macedo com o Presidente da República. E... nenhuma palavra sobre as mortes! Tendo em conta que se tratava da mesma versão do noticiário exibida no Brasil, dois aspectos chamam a atenção: a despeito da sua longa presença em Moçambique, este foi um dos raros momentos em que a emissora fez uma reportagem sobre o país (com quem tem relações históricas importantes). O outro aspecto inquietante é mais óbvio, mas não custa colocar a pergunta: porquê a emissora não noticiou as mortes? Dadas as enormes distorções produzidas pela mídia global em relação ao continente africano, a existência de meios de comunicação in loco – particularmente brasileiros – poderia contribuir para maior troca de informações. Mas não é o que se verifica.
Há um outro “detalhe” não menos importante: na internet, que neste caso, funciona como uma fonte alternativa de informação, a notícia das mortes foi dada pelo site globo.com, da Rede Globo, não por acaso, a principal concorrente da Rede Record. Assim foi apresentada a notícia: “Fiéis morrem em inauguração de templo na África”. Na “África”? Qual é a dificuldade de se dizer que o tal facto ocorreu em “Moçambique”? Este detalhe, aparentemente irrelevante, está na base de toda uma construção ideológica que produz e reproduz desconhecimento sobre a realidade do continente; é justamente esta generalização sistemática que reduz a enorme complexidade das experiências sociais, políticas e culturais africanas. O que vai na contramão das reivindicações do(s) movimento(s) negro(s) brasileiros que, dentre outras conquistas, conseguiram recentemente a introdução do ensino de História da África no currículo escolar oficial .
Este aspecto diz muito sobre o tipo de diálogo que o Brasil pretende estabelecer com países africanos. É certo que colocar o debate dessa forma é inadequado, uma vez que não há uma uniformidade nessa presença do “Brasil”, particularmente em Moçambique. Mestres de capoeira, pastores evangélicos, intelectuais, artistas, grandes empresários, políticos, etc. representam diferentes sectores da sociedade que não necessariamente compartilham das mesmas visões de mundo e nem tem a mesma proposta de interacção social. Entretanto, a força dos meios de comunicação de massa – muitas vezes ligados a interesses do status quo - acaba por difundir percepções problemáticas sobre a realidade, de ambos os lados. Daí que Carlos Moore (2008), intelectual pan-africanista cubano, defende que este diálogo entre culturas deve se desenvolver privilegiadamente entre a sociedade civil - brasileira e africana(s) – sob paradigmas para além daqueles já existentes nas relações entre o Estado e o grande empresariado.
O Juízo Final
Enfim, pelo que consta, Mulher Melancia e Bispo Macedo não se encontraram, mas diariamente dividem o espaço televisivo que adentra os lares moçambicanos, cada qual à sua maneira. Independente disso, as forças sobrenaturais trataram de separá-los: por volta das 10 horas da manhã de domingo, um forte temporal se abateu sobre a cidade de Maputo e parou justamente momentos antes da inauguração do tal Cenáculo da Fé. Há quem diga que os Deuses fizeram descer as águas para lavar a “profanação” da noite anterior e abrir caminho para a manifestação do “sagrado” no dia seguinte. Com o sacrifício de duas almas...
Referência bibliográfica
MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008, pp. 59-60.

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